O Velho Cais – Parte III – Travessia
O céu já pendia para o azul profundo quando o barco partiu.
O céu já pendia para o azul profundo quando o barco partiu. A vela se inchava ao sopro do vento, e o casco cortava mansamente as águas da baía de São Marcos. Toinho e Theodoro estavam lado a lado, sentados perto da proa, deixando que o silêncio dissesse o que as palavras ainda buscavam.
A cidade ficava para trás, com suas luzes acesas como vaga-lumes na memória. Pouco a pouco, os casarios coloniais iam sumindo, como se mergulhassem no mar. Era a distância do cais — do porto — a enturvar a vista e a intimidar o caminho. À frente, a direção era Alcântara; mas o destino, esse, era bem mais fundo.
— E quando a gente encontra o nosso lugar? — perguntou Toinho, com os olhos brilhando mais pelo pensamento do que pela luz do céu.
Theodoro mirou o horizonte, onde o mar e o tempo pareciam se confundir.
— Quando a gente encontra o nosso lugar, menino, é como se o peito sossegasse. A alma se ajeita dentro da gente, feito rede armada em varanda antiga. Tudo continua, mas agora com sentido. A gente entende por que demorou, por que doeu, por que ficou.
O menino sorriu, mas não por completo. Havia algo ainda inquietando-lhe por dentro.
— Mas… por que ainda parece que falta? Como se a gente nunca fizesse tudo como devia?
Theodoro suspirou. O vento passava leve entre os cabelos brancos, e sua voz vinha baixa, como a brisa do início da noite:
— Porque o mundo cobra, Toinho. Cobra sem parar. Quer que a gente corra, entregue, resolva. E, pior: a gente aprende a se cobrar também. É uma mania de pensar que viver é uma tarefa a ser cumprida, quando, na verdade, viver é presença — não desempenho.
Toinho escutava com a alma. As palavras do velho se ancoravam dentro dele como um barco que finalmente encontra cais.
— Então… a gente pode parar?
— Pode. E deve. Parar é sabedoria. Só quem aprendeu a parar consegue ver o que realmente importa. Quem corre demais esquece de olhar a paisagem — e é nela que a vida se revela: nos detalhes, nos cheiros, nos sons, nos olhos dos outros.
Theodoro fez uma pausa. Olhou Toinho como quem deseja deixar algo marcado.
— E tem mais, Toinho: quem já provou da dor tem mais chances de se encontrar. Porque a dor revela nossas vulnerabilidades, mas também nossa capacidade de responder, transformar, ousar. É nela que a gente descobre o que importa de verdade — e o que só fazia peso.
O menino ficou quieto. O barco avançava, a água se abria em silêncio. O tempo passava, como sempre — mas agora era um tempo diferente: o tempo que se sente, não o que se conta.
— Theodoro… e se a gente se perder de novo?
O velho sorriu, com ternura.
— A gente se acha, menino. Quem já se encontrou uma vez nunca mais se perde de verdade. Pode até andar em círculos, mas o coração sabe o caminho de volta.
Alcântara ainda era distante, mas ali, naquela travessia, o destino já começava a se cumprir. Porque, mais que chegar, era preciso ir — e ir junto.
O mar era espelho, era estrada, era tempo.
E o tempo, enfim, tocava o chão — ou a água — como quem se despe da pressa e se entrega ao agora.
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