Coluna do Sarney

Ainda a Venezuela

A ideia de democracia é curiosa: vive acompanhada de adjetivos, mas só vale quando não os tem.

José Sarney

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A ideia de democracia é curiosa: vive acompanhada de adjetivos, mas só vale quando não os tem. Democracia liberal, democracia social, democracia relativa, democracia isso ou aquilo. Os adjetivos entram como atenuações do substantivo e já vão, ao qualificar, desqualificando. 

Quando estávamos, Alfonsín, Sanguinetti e eu, construindo a aliança que resultou no Mercosul, fui inaugurar a 15ª turbina de Itaipu. Encontrei nosso parceiro, Alfredo Stroessner, Presidente do Paraguai havia uns anos — desde 1954! Queria fazer parte dos acordos. Foi difícil explicar que tínhamos uma cláusula democrática, só estávamos falando entre países com presidentes eleitos pelo povo. Ele se iluminou: — “Então está ótimo, eu fui eleito em eleições limpas, tive mais de 90% dos votos!”

Fiquei pensando na República Velha. A Constituição de 1891 dizia que “o presidente e o vice-presidente da República serão eleitos por sufrágio direto da Nação e maioria absoluta de votos”. Logo foram adotadas as providências para que isso acontecesse: com exceção de Epitácio e do Marechal Hermes, de quem Rui tirou um terço dos votos, e de Bernardes, quem teve menos votos foi Prudente de Moraes, com 88% deles.

Agora temos esse problema na Venezuela: qual a percentagem dos votos que teve cada candidato? O Nicolás Maduro disse no próprio dia das eleições que tinha tido dois terços dos votos e estava eleito. O Edmundo González Urrutia afirmou, por seu porta-voz Antony Blinken, que também teve mais de dois terços. Agora o Conselho Nacional Eleitoral confirma a vitória de Maduro por 51,97% dos votos. Tenta matar a cobra, mas, ao não mostrar o pau — as atas —, continua a mesma crise de confiança. 

O Papa Francisco pediu a busca da verdade. A verdade eleitoral deveria surgir com a publicação das atas, mas a cada dia que passa, naturalmente, aumenta a incerteza sobre a veracidade das atas que aparecerão. Em Minha Formação, Nabuco conta a eleição “acomodada” de Rutherford Hayes, decidida não pelo colégio eleitoral, mas por uma comissão do Congresso americano, e escreveu: “Deve, assim, a sua eleição, ou, melhor, o seu posto, a um sem número de politicians de todos os matizes, desde os fabricadores de atas falsas até os juízes da Corte Suprema, que as apuraram.” 

Felizmente, com a urna eletrônica, nós acabamos com as atas falsas. Aqui a ideia europeia da mesa receptora se transformar em mesa apuradora, com os mesmos fiscais, era inviável. A apuração, mais que a votação, definia os resultados. Felizmente isso é, para nós, passado distante. 

Temos que acompanhar com cuidado a situação da Venezuela. Hugo Chávez retomou a questão do Essequibo, há muito tempo resolvida por arbitragem. Também nós tivemos problemas naquela fronteira, e Rio Branco recorreu à arbitragem do rei da Itália, Vítor Emanuel II, que repartiu o território — amplamente demonstrado como nosso por Nabuco, nosso defensor — entre o Brasil e a Inglaterra. A decisão era arbitrária, pois não se baseava em evidências, nem as que apresentáramos nem as que os ingleses sustentavam, mas o Brasil a aceitou, e fez bem. No caso da fronteira da Guiana com a Venezuela, esta aceitara a decisão do tribunal de Paris, depois a repudiara, voltou a aceitar e a repudiar. Maduro continuou a linha de Chávez. Qualquer tentativa de solução militar — e não podemos ignorar o quanto a Venezuela se armou desde Chávez — implica em envolvimento do Brasil, que está fora de problemas de fronteiras há muitos e muitos anos. 

A Venezuela tem tanta importância e tantas ligações com o Brasil. Ela tem que participar da democracia latino-americana e tem o direito de escolher o seu governo. O Brasil preconiza a autodeterminação dos povos e deve buscar a integração da América Latina. É o que determina a Constituição.

Mas a Venezuela cada vez mais se afasta da democracia. É uma ditadura escancarada, na qual Maduro exerce todos os poderes, não aceita concorrente e, portanto, comprovadamente, não tem condições de governar um país democrático. 

As democracias não se guerreiam, mas as ditaduras estão sempre atrás de uma guerra e da violência para legitimarem-se.

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