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José Sarney é ex-presidente da República.
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João Paulo II e Gorbachev

O mundo perdeu um grande estadista.

José Sarney

Atualizada em 02/05/2023 às 23h38
 

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Contou-me Dom Mauro Morelli que, ao felicitar o Santo João Paulo II pelo trabalho que tinha feito em favor da queda do Muro de Berlim, evitando que o mundo se confrontasse com as duas ideologias, que certamente terminariam na guerra nuclear, o Papa, humildemente, respondeu: “Não. O responsável foi o Mikhail Gorbachev.” Fez uma pausa: “Mas eu dei um empurrãozinho.”

 

A Humanidade deve a Mikhail Gorbachev o fim do Estado concentracionário comunista, feito que só se compara ao de Winston Churchill ao derrotar — com a ajuda de Roosevelt — o Estado nazista. Os dois Estados eram iguais no desprezo do indivíduo, no controle pelo medo, na destruição da vida: foram derrotados por dois homens muito diferentes — um, o intelectual aristocrata, o outro, o apparatchik camponês —, mas iguais na compreensão de que a política precisa ter a medida do humano.

Fui o único Presidente brasileiro a visitar a União Soviética. Gorbachev, na companhia da primeira-dama Raíssa, nos recebeu com muita delicadeza e, logo que nos instalamos, convidou-nos, a Marly e a mim, para acompanhá-los num passeio pelos jardins do Kremlin. Fomos logo cercados por participantes de um congresso que acontecia no grande complexo do Palácio, e ele os atendeu com muita calma, respondendo a uma enxurrada de questões. Disse-lhe que levaria comigo essa imagem de um comício no Kremlin. 

Raíssa, que era especialista em ícones, nos levou a um museu a eles dedicados numa velha igreja fechada pelo Partido Comunista. Ao entrarmos, Gorbachev retirou o seu chapéu. Marly observou: “Ele ainda tem fé. Mesmo que seja museu, é uma igreja. E ele tem respeito por ela.” 

Passamos por um velho canhão, relíquia de alguma das guerras, que não foram poucas na Rússia. Gorbatchev nos disse: “Presidente, veja este canhão. O Sr. Reagan tem a mania de ser professor. De vez em quando, ele me liga e quer dar-me aulas. Outro dia, ele me perguntou por uma arma de alto poder destrutivo, que eu já estaria desenvolvendo. Eis a arma: este velho canhão, que estou tendo a confiança de mostrar a Vossa Excelência.”

A glasnost, a perestroika e a demokratizatsiya — a democratização — já estavam em marcha. O sentimento era de que os tempos que haviam assombrado aquela imensidão de mundo estavam se desanuviando. Havia esperança no ar e nos olhares. Ele tivera a audácia de convocar uma câmara eleita, o Congresso dos Deputados do Povo, e de dissolver o Soviet Supremo, para que um novo Poder Executivo fosse escolhido pelos deputados. Estes o fizeram o primeiro Presidente eleito da União Soviética. 

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Eu liderei uma transição para a democracia que foi bem-sucedida. Mas paguei um preço alto. A transição que Gorbachev fazia tinha, entretanto, desafios infinitamente maiores. Para começar, ele tinha que conter a segunda força militar do mundo. 

A Humanidade lhe deve a iniciativa de propor o fim das armas nucleares para o ano 2000, recusada por Reagan, mas ainda importantíssima — recebeu o Prêmio Nobel da Paz —: o INF, Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário. Milhares de ogivas nucleares foram desarmadas por esse acordo, que a irresponsabilidade de dois homens deixou vencer: Trump e Putin. 

Seu caminho acabou com o Muro de Berlim, que dividia o mundo no ódio ao inimigo. Abriu espaço para a modernização de grande parte da Europa, para uma expansão da democracia. 

Mas, no processo, gerou muitos inimigos. Numa ironia do destino, ele, que liderara uma iniciativa contra o alcoolismo, teve um alcoólatra como nêmesis. Sua queda acabou de esfacelar a União Soviética, para o ressurgimento da velha e trágica Rússia. 

Em 1996, em Nova York, entrei numa ótica em busca de um par de óculos. Gorbatchev fazia o mesmo. Nós nos saudamos e, com a ajuda do Vice-Cônsul Dario Campos, que fala russo, entre muitas línguas, relembramos os tempos que vivêramos e refletimos sobre o que vivíamos. Ele tivera durante muitos anos a sobrevivência do mundo nas mãos. Agora éramos apenas mais um par de turistas. 

Mas, na História, ele terá um lugar alto entre os grandes estadistas do século 20.

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