A coragem de Biden
Imagino o que não foi a agonia da decisão. Não é fácil para um político admitir que não está em condições de ganhar.
O mundo sempre olhou com admiração a experiência democrática americana. Mas nela choca a violência política, com o assassinato de quatro presidentes e de vários líderes políticos, entre inúmeras tentativas. O tiro contra Trump segue o mau costume.
Surpreendente mesmo foi o que aconteceu com o Presidente Joe Biden. Ele é o decano dos políticos americanos. Sua vitória sobre um ex-governador e duas vezes senador lhe dera uma entrada brilhante no Senado. Sete vezes senador, mostrou-se um habilidoso negociador e legislador, figura importante na Comissão de Justiça e na Comissão de Relações Exteriores. Tentou pela segunda vez ser candidato à presidência, em 2008, quando a disputa se centrou em Obama x Hillary, e acabou como Vice-Presidente do primeiro presidente negro. Em 2020, para concorrer contra Trump, venceu as primárias e escolheu como vice Kamala Harris, que desistira no meio da campanha. Fez então de Trump o primeiro presidente candidato à reeleição a ser derrotado.
Tragédias marcam sua vida pessoal. Perdeu a mulher e uma filha num acidente automobilístico. Seus dois filhos, Beau e Hunter, sobreviveram ao acidente. Beau elegeu-se duas vezes Procurador-Geral de Delaware e parecia ter uma grande carreira pela frente, mas foi vítima de um tumor cerebral.
Encontrando o país em meio ao desastre da Covid-19 e com uma situação econômica muito ruim, Biden conseguiu uma extraordinária recuperação econômica e criou quinze milhões de empregos. Enfrentando primeiro um Senado de maioria republicana e depois uma Câmara trumpista, conseguiu mesmo assim avançar em pautas importantes, como combate a mudanças climáticas, redução de barreiras comerciais, controle de armas, direito das minorias etc.
Agora a disputa eleitoral mantinha-se equilibrada, com Biden denunciando a — imensa — ameaça à democracia que Trump representa e Trump o chamando de senil e desonesto, usando o velho truque de acusar o adversário de seus próprios defeitos. Espantosamente os processos contra Trump — condenado por difamação de uma mulher que estuprara, por fraude comercial, por falsificação de documentos para esconder fraude eleitoral e processado por atentado à segurança nacional, tentativa de fraude eleitoral e tentativa de golpe de Estado — aumentaram sua popularidade. Biden surpreendera os republicanos ao se apresentar com toda vivacidade no discurso “do Estado da União”.
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Mas no debate entre os dois candidatos, no começo do mês, Biden começou desnorteado e incapaz de atacar a torrente de mentiras que um Trump exultante enunciava sem responder as perguntas. O NY Times, que se diz ter rancor contra Biden por ter recusado uma entrevista exclusiva, foi o primeiro a denunciar sua incapacidade, silenciando sobre a de Trump. E a mídia veio numa maré crescente, até seu recolhimento por estar com Covid.
Neste domingo, então, Biden fez o que nenhum presidente americano fizera antes dele: desistiu de competir, apoiando a sua vice, Kamala Harris.
Imagino o que não foi a agonia da decisão. Não é fácil para um político admitir que não está em condições de ganhar. Mais difícil fazer isso sem se declarar incapaz da gigantesca tarefa de governar os Estados Unidos. Biden, que é considerado um homem de imensas qualidades humanas, mostrou que é capaz de um gesto raríssimo de altruísmo político. Um gesto de muita coragem.
Kamala Harris parte agora para o desafio de tornar-se a candidata do Partido Democrata. Seus primeiros passos foram positivos, conquistando apoio de políticos importantes buscando o necessário contato direto com os delegados à convenção.
Conseguiu desde logo um trunfo: as doações eleitorais, que haviam quase cessado, bateram ontem um recorde, com 50 milhões sendo depositados em menos de doze horas. Muita coisa corre em torno do objeto misterioso preferido das bolsas.
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