Em São Luís

Criança negra é apelidada de 'CLT' na escola e recebe ‘carteira de trabalho’ com salário de R$ 50 reais por ano

A instituição onde a criança estuda ofereceu suporte à família e tratou do assunto com todos os pais da turma. Caso acende alerta para situações de discriminação e bullying nas escolas.

Anne Cascaes / Imirante.com

Atualizada em 29/03/2025 às 22h12
Menino de 9 anos recebeu uma ‘carteira de trabalho’ dos colegas de turma, que passaram a apelidá-lo de CLT. (Foto: arquivo pessoal)
Menino de 9 anos recebeu uma ‘carteira de trabalho’ dos colegas de turma, que passaram a apelidá-lo de CLT. (Foto: arquivo pessoal)

SÃO LUÍS“Mendigo”, “CLT”, “pedreiro” e “pobre”. Esses foram os apelidos dados, por colegas de turma, a uma criança de nove anos em São Luís. O caso foi descoberto pelo pai da vítima, o jornalista e radialista maranhense Ismael Filho. 

Após assistir a minissérie ‘Adolescência’ da Netflix, que traz cenas provocantes sobre violência e bullying, Ismael resolveu conversar com o filho Gustavo para questioná-lo se alguma vez a criança já tinha sido vítima de alguma situação ofensiva ou constrangedora na escola.

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“Já há algum tempo ele [a criança] recebeu dos colegas essa carteira de trabalho de papel, e era chamado pelos colegas de CLT, mendigo, pedreiro, pobre. Nós, a família, não sabíamos, porque ele não falava disso em casa e muitas vezes nem entendia o porquê de ser chamado assim, muito menos da gravidade do que está por trás disso”, contou Ana Flávia, também filha de Ismael e irmã do Gustavo.

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Ana compartilhou o caso do irmão em suas redes sociais. Ao Imirante.com, ela relatou como tudo aconteceu. “Nosso pai é sempre muito atento, e depois de assistir a série Adolescência da Netflix, resolveu por precaução investigar se o Gustavo já passou ou já presenciou alguma situação de bullying na escola. Foi então que ele contou esse episódio e mostrou a carteira de trabalho de papel que os colegas fizeram”, disse Ana Flávia. 

Os pais, ao saberem o que vinha acontecendo, entraram em contato com a escola da criança, que forneceu o suporte e o diálogo com os outros pais dos colegas da turma de Gustavo. (Foto: arquivo pessoal).
Os pais, ao saberem o que vinha acontecendo, entraram em contato com a escola da criança, que forneceu o suporte e o diálogo com os outros pais dos colegas da turma de Gustavo. (Foto: arquivo pessoal).

A ‘carteira de trabalho’ mencionada pela família do Gustavo foi desenhada em uma folha de papel e continha a seguintes informações, escritas à mão:

  • Profissão: pedreiro civil
  • Salário: 50,25 por ano
  • Jornada de trabalho: 18 horas por dia

Logo que se deparou com a situação, a família do menino informou o ocorrido à escola, que prontamente agendou uma reunião com todos os pais e professores das crianças da turma para tratar do caso, dando todo o suporte necessário à família dele

A escola onde o Gustavo estuda, em São Luís, é uma instituição particular em que ele é aluno bolsista. De acordo com a família, esse fato pode ter contribuído para que os colegas de turma fizessem esse tipo de associação ao menino. 

“Muitas questões com raízes de problemas sociais profundos. O fato dele ser bolsista e isso ser associado à pobreza. O fato dele ser um menino negro num meio maioritariamente branco. Acreditamos que sim, tem ligações com o racismo e a falta de consciência humana e de classe”, relatou a irmã que Gustavo, que é professora de língua portuguesa e doutoranda. 

Como lidar com crianças que vêm sofrendo algum tipo de discriminação?

A família de Gustavo conta que no início ele não entendeu, não sabia o que era CLT e muito menos porque o fato dele ser pedreiro seria motivo de risada entre os colegas. “Quando ele contou foi completamente ingênuo, não entendia a gravidade, mas entendia a intenção e o tom que era claramente de exclusão e chacota. A reação da família ao saber foi de revolta, conversamos com ele e explicamos o porquê que isso é grave, a importância dele enquanto criança estar atento a possíveis casos de bullying com ele e com os outros. Partindo do pressuposto de que a atenção dos pais e da família deve ser não somente para casos em que seu filho sofre bullying, mas se ele também comete bullying com os outros”, afirma Ana Flávia.

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Ana Flávia reforça que a atenção da família agora está voltada para o alerta que esse caso pode promover. “Queremos promover o debate entre pais, crianças, escolas, professores, sobre a gravidade do bullying, da discriminação e do racismo dentro de sala de aula. Provocar os pais a repensarem o acesso desenfreado e ilimitado de crianças a internet, lugar que muitas vezes é uma terra sem lei”, pontua ela. 

Para a psicóloga e psicopedagoga Miryan Lacerda, é importante o desenvolvimento de um trabalho preventivo de psicoeducação, ensinar as crianças sobre o que é o bullying e como ele se apresenta de diferentes formas, adequando a comunicação de acordo com cada faixa etária. 

“Com as crianças menores, cabe ensinar sobre valores como respeito, cuidado e empatia, já com os adolescentes, criar espaços de diálogo sobre o que é o bullying e refletir acerca das suas consequências, inclusive conscientizando sobre a criminalização dessas atitudes, são ações válidas”, explica Miryan. 

Ela também explica que a prática do bullying pode desencadear baixa autoestima, diminuição da interação social, ansiedade, depressão, dificuldades acadêmicas e transtornos psicossomáticos. “É válido ressaltar que os efeitos psicológicos do bullying afetam não só a vitima, mas têm consequências psicológicas também nas crianças agressoras e espectadoras, pois também estão vivenciando essa prática violenta”, pontua.

“Acolher e dar segurança para esta criança é o primeiro passo. Ela precisa sentir que não está sozinha e tem um adulto de confiança ao seu lado, desta forma será mais provável que relate possíveis situações de violência escolar. Dialogar com a escola também é imprescindível”, afirma a psicóloga.

O que fazer ao se deparar com casos de discriminações contra crianças e/ou adolescentes?

“Quando a gente fala de racismo, tendo como vítima crianças e adolescentes, não difere muito da questão dos adultos. Porém, a gente pode apontar alguns dados, que é geralmente o aspecto financeiro, a forma como se veste, o cabelo, o nariz. A gente tem algumas características de racismo recreativo que no ambiente escolar é o que impera”, explica o advogado presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-MA Erik Moraes.

De acordo com Erik, os pais podem mobilizar-se no sentido de conversar com suas crianças e as ensinarem a como agir diante de determinadas situações. “A dica que a gente dá para pais e educadores é fazer prova. A gente fala muito sobre racismo mas a gente não ensina como fazer prova. O celular é a arma do cidadão, você pode utilizar para gravar filmar tal fato”, explica. 

Ele acrescenta que, na falta de um celular, testemunhas como algum colega que viu o ato de discriminação sendo cometido também são importantes. “É muito importante fazer provas, mas caso não tenha as provas, você pode também levar o seu relato”, pontua. 

“A gente tem a Defensoria Pública, a OAB, por meio das comissões da verdade, promoção da igualdade racial, direitos humanos, liberdade religiosa, diversidade para receber essas denúncias”, alerta o advogado Erik Moraes. 

🚨 Fique alerta em casos de racismo:

O advogado Erik Moraes ressalta que em São Luís existe uma delegacia de Crimes Raciais, que fica localizada na avenida Quarto Centenário, ao lado do Batalhão da Polícia.

"Se você sofrer algum tipo de racismo ou discriminação, aqui em São Luís a gente tem essa delegacia especializada que, aliás, é a única do Estado. A Comissão de Direitos Humanos é um braço da OAB, que também está de portas abertas a qualquer criança e adolescente que se sinta vítima de violência, ela pode nos procurar seja na nossa sede ou em nossas redes sociais, aqui a gente tem uma estrutura especializada pra receber a denúncia da criança e do adolescente, temos psicólogos, assistentes sociais e todo um preparo para
que a gente receba essa denúncia", informa.

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