Engenharia em Colapso: Mais um Sinistro e a Desvalorização da Engenharia
Na manhã de 20 de setembro de 2025, parte da estrutura da Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, localizada no bairro Cohab Anil II, em São Luís, desabou de forma repentina.
Mais um sinistro assombra o Brasil, agora no Maranhão. Na manhã de 20 de setembro de 2025, parte da estrutura da Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, localizada no bairro Cohab Anil II, em São Luís, desabou de forma repentina. Felizmente, não houve vítimas, mas a cena dos destroços espalhados, veículos atingidos e a nuvem de poeira que tomou conta do entorno traduz, com clareza, o retrato de uma engenharia em colapso.
Não se trata de um episódio isolado. Já testemunhamos desabamentos de igrejas, colapsos de pontes, rompimentos de barragens e incêndios de grandes proporções. Cada caso é tratado como um acidente pontual, quando, na realidade, compõem uma sequência de falhas estruturais, institucionais e sociais. O Maranhão e o Brasil parecem ter se acostumado a conviver com esses alertas, como se fosse normal naturalizar tragédias anunciadas.
Esse quadro recorrente não pode ser dissociado da desvalorização mais ampla da engenharia no Brasil. Estudos, projetos, análises, pareceres, fiscalização, direção e execução de obras e serviços técnicos são atividades de competência privativa dos engenheiros, como estabelece o artigo 7º da Lei nº 5.194/1966. A formação em engenharia exige sólida base em cálculo diferencial e integral, eletricidade, mecânica dos sólidos, computação e estatística. No entanto, o país vive uma crise educacional profunda, marcada por altos índices de evasão e desinteresse crescente pelos cursos de engenharia. Ao desprezar o estudo e a formação técnica especializada, a sociedade paga o preço.
Não se pode falar em ausência de fiscalização, já que, em 2025, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Maranhão (CREA-MA) realizou, até o momento, 8.968 ações. Isso equivale a uma média de 34 por dia, ou seja, a cada 43 minutos é produzido um relatório de fiscalização pelo Conselho, conforme divulgado em seu sítio eletrônico. Os números demonstram empenho e presença do CREA-MA nas ruas, mas também revelam uma limitação estrutural que precisa ser discutida com seriedade.
Por mais que o CREA-MA fiscalize, seu poder de polícia é restrito pelo que estabelece a Lei nº 5.194/1966. O artigo 71 prevê como penalidades apenas advertência reservada, censura pública, multa, suspensão temporária do exercício profissional e cancelamento definitivo do registro. Não há, portanto, poder de embargo de obras. O CREA-MA pode multar e responsabilizar profissionais, mas não pode paralisar imediatamente um empreendimento irregular. No caso das empresas e demais organizações, seu poder se limita à aplicação de multas, o que se mostra insuficiente diante da gravidade dos riscos que essas entidades podem impor à coletividade.
Outro fator que corrói a engenharia brasileira é o ensino. O Ministério da Educação (MEC), responsável pela regulamentação e fiscalização do ensino superior, somente em 2025 proibiu a abertura de cursos de engenharia 100% a distância (EaD). Embora tenha reconhecido o erro e dado um passo importante, a medida ainda é insuficiente, pois a regulação permite até 60% da carga horária em EaD. Isso ocorre porque, no modelo semipresencial, pelo menos 40% das atividades são presenciais, mas outros 20% podem ser presenciais ou síncronas mediadas por tecnologia, que, embora ocorram ao vivo, continuam sendo aulas remotas. Na prática, permanecem graves fragilidades em uma profissão que envolve alto risco coletivo e exige vivência em laboratórios, experimentos e práticas supervisionadas.
A engenharia não pode ser tratada como um curso passível de ser ofertado integralmente a distância. Trata-se de uma profissão de alto risco à coletividade: um erro de cálculo, execução ou fiscalização pode custar dezenas ou centenas de vidas, além de comprometer patrimônios públicos e privados. A formação do engenheiro exige atividades presenciais em laboratórios, práticas supervisionadas e estágios em campo, em contato direto com situações reais, equipamentos, materiais e condições de operação que não podem ser simuladas adequadamente de forma remota.
Do ponto de vista acadêmico, a engenharia exige sólida base em ciências exatas, materializada em disciplinas como equações diferenciais, métodos das diferenças e elementos finitos, transformadas integrais, probabilidade e estatística, álgebra linear, mecânica dos sólidos, fenômenos de transporte, mecânica clássica, ondas, termodinâmica, eletricidade, magnetismo e química. Esse conhecimento precisa ser articulado com práticas de laboratório e experiências concretas em obras e serviços, pois somente a integração entre teoria e prática garante a formação de profissionais capazes de propor, projetar e executar soluções seguras, eficientes e duradouras.
A situação se agrava com a Resolução CNE/CES nº 2/2019, que flexibilizou os conteúdos profissionais e, na prática, os transformou em conteúdos específicos, deixando sua definição a cargo das Instituições de Ensino Superior (IES). Isso contrasta com a Resolução CNE/CES nº 11/2002, que estabelecia um núcleo de conteúdos profissionalizantes obrigatório, representando cerca de 15% da carga horária mínima. Sem diretrizes claras, perde-se a identidade profissional das modalidades de engenharia.
Essa mudança ameaça a essência da engenharia brasileira: seu perfil generalista e adaptável. Sem núcleo obrigatório, não há garantia de que engenheiros civis estudem pontes, engenheiros eletricistas estudem geração de energia, engenheiros de telecomunicações estudem comunicações móveis, engenheiros mecânicos estudem veículos automotores, engenheiros aeronáuticos estudem aeronaves ou engenheiros de petróleo estudem exploração de jazidas petrolíferas.
O resultado imediato será a sobrecarga nas Comissões de Ensino e Atribuição Profissional (CEAPs) dos CREAs, obrigadas a analisar formações caso a caso. No médio e longo prazo, o cenário é ainda mais grave: judicialização e disputas sobre atribuições, criando um futuro de caos, desorganização e insegurança para toda a sociedade.
Faz-se necessário que o MEC adote medidas mais rigorosas, determinando que os cursos de engenharia sejam ofertados com pelo menos 70% da carga horária em atividades presenciais. Atualmente, apenas cursos como Direito, Enfermagem, Odontologia e Psicologia possuem esse limite, enquanto a Medicina permanece integralmente presencial. A engenharia, que envolve risco coletivo e exige prática constante em laboratórios e acompanhamento direto de professores, não pode continuar relegada a um modelo flexível que compromete a qualidade da formação.
Assim, convivemos com dois limites perigosos: de um lado, os CREAs sem poder de embargo, restritos a punições administrativas; de outro, um ensino fragilizado, autorizado pelo próprio MEC. A soma desses fatores ajuda a explicar por que seguimos contabilizando sinistros em barragens, obras, escolas, igrejas e pontes.
O CREA-MA tem feito sua parte, com milhares de ações de fiscalização anuais, a criação da Comissão de Análise e Prevenção de Acidentes (CAPA) e a realização do Abril Verde, iniciativa que se tornou referência nacional em saúde e segurança no trabalho. Mas isso não basta sem a necessária sinergia entre o CONFEA, os CREAs, a Mútua e o MEC. O que temos visto, na prática, são embates que fragilizam em vez de fortalecer.
Exemplo disso é o Parecer CNE/CES nº 209/2020, no qual o Conselho Nacional de Educação (CNE) acusou os Conselhos Profissionais de extrapolar suas atribuições, quando, na realidade, defendiam a sociedade ao exigir formação compatível com o exercício profissional. O tempo mostrou que os Conselhos tinham razão, tanto que o MEC reformulou sua política educacional. O mundo acadêmico precisa reconhecer a importância dos Conselhos de fiscalização profissional e promover diálogo, pois profissionais qualificados são a premissa básica para a habilitação legal.
A revogação dos cursos 100% EaD em diversas graduações e a explosão de sinistros na engenharia confirmam esse diagnóstico. A Portaria MEC nº 378, de 19 de maio de 2025, determinou que Direito, Enfermagem, Odontologia e Psicologia sejam presenciais (70%), enquanto Medicina permanece integralmente presencial. Já a engenharia, embora de alto risco coletivo, manteve a possibilidade de até 60% de EaD. Reconhece-se a gravidade do tema, mas o problema permanece.
Some-se a isso a falta de consciência social. Quem nunca ouviu frases como: “Eu sempre construí assim e nunca caiu”, “Meu pedreiro cobra mais barato” ou “O serralheiro de um conhecido sabe construir sem engenheiro”? Essas falas revelam a perigosa confusão entre experiência empírica e responsabilidade técnica e configuram exercício ilegal da profissão, tipificado no artigo 6º da Lei nº 5.194/1966. Essa cultura do improviso fragiliza a engenharia, compromete a segurança coletiva e perpetua o ciclo de sinistros.
É preciso deixar claro: engenheiro não calcula apenas quantidade de tijolos ou ferro. Essa é uma visão reducionista do papel do profissional. O engenheiro dimensiona estruturas, instalações elétricas, sistemas de combate a incêndios, sistemas de telecomunicações, entre outros. Trata-se de conhecimento científico complexo, que exige anos de estudo e não pode ser substituído por “achismos” ou mera experiência empírica.
Valorizar a engenharia é valorizar a vida. É hora de superar embates institucionais e construir a cooperação necessária entre MEC e o Sistema CONFEA CREA MÚTUA para que a educação forme engenheiros preparados e a sociedade possa confiar na segurança de suas barragens, pontes, escolas e igrejas.
Artigo elaborado em colaboração com o Eng. Civ. Mikhail Luczynski, Mestre em Engenharia Civil.
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