COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

O voo das horas

Marília já era voo — mesmo sem asas, carregava no peito o céu inteiro.

Kécio Rabelo

Atualizada em 24/10/2025 às 14h21

Na Vila Estrela, onde o tempo andava descalço e os dias amanheciam com cheiro de café coado, morava Marília — uma menina de olhos largos, curiosos, que pareciam querer abraçar o mundo. Era pequena de corpo, mas carregava dentro de si um universo de ideias.

Tinha mais ou menos uns dez anos e uma rotina que misturava inocência e responsabilidade. Ajudava a mãe a varrer o quintal, a estender roupa nas cordas de arame, a buscar água no pote de barro. Fazia tudo em silêncio, como quem ouve o que o mundo tem a dizer. E, quando o trabalho acabava, corria para o quintal — o seu território de sonho.

Ali, no fundo da casa, uma velha goiabeira se erguia como um altar verde. Era o coração secreto de Marília. Sob seus galhos, ela guardava pequenos tesouros: uma pedrinha em forma de coração, um botão de flor seco, daqueles que se guardam dentro dos livros, uma pena azul que o vento trouxera de longe. Tudo cabia dentro de sua mochilinha de pano colorido, que ela mesma costurara com a ajuda da avó.

Mas o que Marília mais guardava não cabia em mochila alguma: era o desejo de voar.

Ela sonhava em ser um pássaro. Dizia que, se tivesse asas, atravessaria uma nuvem — e com isso talvez atravessasse também as sombras que às vezes se aninhavam dentro dela. Acreditava que tocar o céu seria o mesmo que tocar o infinito; que um instante lá em cima valeria por todas as esperas da vida aqui embaixo.

Havia algo de místico nesse sonho, algo que nem ela mesma sabia explicar. Talvez fosse o desejo de liberdade, talvez o instinto de quem quer compreender a vida de outro ângulo. Às vezes, imaginava-se como um bem-te-vi, com o peito amarelo brilhando ao sol; outras, como um andorinhão, capaz de cruzar oceanos sem se cansar.

Mas havia também um outro lado nesse querer: o do abrigo.
Marília queria fazer um ninho na goiabeira. Queria morar entre os galhos, sentir o balanço suave do vento embalando o sono, ouvir o barulho das folhas como se fossem orações. Passava horas olhando os passarinhos que ali vinham cantar. Observava as estações mudando: as flores que nasciam tímidas, os frutos que amadureciam, as folhas que se despediam do galho e caíam mansas, como se soubessem que voltar ao chão também é uma forma de recomeçar.

Havia dias em que a vila parecia parada — o sol alto, as ruas quietas, as vozes dispersas. E era justamente nesses dias que Marília sentia mais forte o chamado do céu. Subia no muro, estendia os braços e deixava o vento passar entre os dedos, como quem mede a distância entre o sonho e a realidade.

O vento, cúmplice, às vezes fazia rodopiar sua saia de chita.
A menina então fechava os olhos e se deixava levar pela fantasia: via-se subindo, leve, deixando para trás as telhas, os fios, as janelas abertas com cheiro de comida. Via a Vila Estrela encolher devagar, até virar um pontinho miúdo, e o mundo se alargar até onde sua imaginação podia alcançar.

No alto, ela acreditava que não haveria tristeza, nem pressa, nem medo — apenas o som doce das asas cortando o ar e a certeza de estar viva de um jeito inteiro.

Marília sonhava, sim, em ser um pássaro, mas talvez o que ela quisesse mesmo fosse aprender o segredo das alturas: esse jeito de voar sem perder o caminho de volta.

E, quando o vento soprava forte, ela sorria. Era como se ele dissesse em sussurros: “Ainda não é hora, pequena… mas um dia.” Era a paciência sendo mestra da vida.

Porque havia algo em Marília que já era voo, mesmo sem asas.
O que ela carregava dentro de si — o desejo, a coragem, a delicadeza — já a fazia ultrapassar o chão.

E quem a via correndo pela Vila Estrela, de mochilinha nas costas e olhar aceso, sabia: mais cedo ou mais tarde, ela encontraria o seu pedaço de céu.


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