COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Dois séculos, duas cidades?

A grande cidade é tema de diversas obras, dentre as quais destacam-se Tempos Difíceis (1854), de Charles Dickens, e Passageiro do fim do dia (2010), de Rubens Figueiredo.

Gabriela Lages Veloso

Ilustração: Bruna Lages Veloso

De acordo com Daniel Puglia, no texto de orelha do livro Tempos Difíceis (1854), as “consequências mais nefastas trazidas pelo rápido avanço do capitalismo no século XIX formam um dos pilares em que se estrutura a estética de Dickens”. Assim, no romance Tempos Difíceis (1854), Dickens pintou uma imagem da sociedade inglesa imersa nas transformações propiciadas pela Revolução Industrial, no final do século XIX, por isso, a narrativa se ambienta na fictícia cidade de Coketown, envolta pela névoa de fumaça das grandes indústrias têxteis, bem como retrata os abismos existentes entre as condições de vida dos patrões/donos das fábricas e os proletários/trabalhadores ingleses – chamados de “Mãos”, ao longo da obra. A fábrica com suas chaminés, o circo do Sr. Sleary, a escola e a discrepância entre a suntuosa mansão do grande industrial Bounderby e o miserável cubículo de seu funcionário Stephen: eis algumas alegorias presentes no romance, que remetem a uma crítica direta ao Capitalismo e às condições insalubres e abusivas as quais os trabalhadores eram submetidos.

Por sua vez, a obra de Rubens Figueiredo, Passageiro do fim do dia (2010), “busca narrar formas de filiação do sujeito à cidade, examinando o atrito que se realiza entre a subjetividade e a experiência urbana” (Patrocínio, 2014, p. 92), uma vez que apresenta em uma cidade inespecífica – portanto todas e qualquer uma –, o personagem principal, nominado Pedro, em um trajeto de deslocamento pela urbe tumultuada. O autor narra o trajeto do personagem Pedro dentro de um ônibus que liga o centro de uma grande cidade à periferia, em deslocamento do trabalho para a casa da namorada, em um bairro afastado, evidenciando um trajeto longo. Pedro, não integrado, observa, olha, analisa com certo distanciamento o que ocorre ao seu redor. Seguindo os pensamentos e memórias de Pedro, sentado em um assento elevado do ônibus lotado, somos apresentados à condição periférica e labiríntica da grande cidade, ao encontro de personagens multifacetados, heterogêneos, marginalizados e em situação de vulnerabilidade social, e à constatação de que espaços invisíveis na cidade revelam que vivemos em cidades partidas, que há muitas cidades na cidade.

Em uma primeira leitura de Tempos Difíceis (1854) e Passageiro do fim do dia (2010), podemos ressaltar o coincidente tom de denúncia dos narradores em face das desumanas e insalubres condições sociais enfrentadas pelos trabalhadores, bem como temos um vislumbre de que existem dois mundos dentro de uma mesma cidade, “o mundo dos ricos e o mundo dos pobres” (Ventura, 1994, p. 10). Essa visão crítica da grande cidade industrial e dos dilemas enfrentados pela população empobrecida evidencia a primeira similaridade entre essas duas obras que são nosso objeto de análise, como demonstram as passagens a seguir:



 

As ruas estavam quentes e poeirentas naquele dia de verão, e o sol estava tão claro que não se podia olhá-lo fixamente, e brilhava até mesmo através do denso vapor que descia sobre Coketown. Fornalheiros saíam dos corredores subterrâneos para o pátio das fábricas e sentavam-se em degraus, colunas e cercas, enxugando o rosto escurecido e contemplando o carvão. A cidade parecia fritar em óleo. Havia por toda a parte o sufocante cheiro de óleo (Dickens, 1854, p.129-130).



 

A sombra da fila, estendida quase ao máximo sobre a calçada, era a única sombra. A demora do ônibus, o bafo de urina e de lixo, a calçada feita de buracos e poças, o asfalto ardente com borrões azuis de óleo, quase a ponto de fumegar - Pedro já estava até habituado. Não são os mimados, mas sim os adaptados que vão sobreviver” (Figueiredo, 2010, p. 8).



 

A partir dos recortes acima, podemos notar que essas obras carregam consigo semelhanças tanto no que diz respeito aos cenários descritos – ambientes sujos e quentes, embebidos em óleo, com odores fétidos, que denotam a condição precária em que vivem as pessoas que ali trabalham/transitam – bem como no que se refere à escolha vocabular, como, por exemplo, a utilização da palavra “poeirenta”, aliada à ideia de altas temperaturas próprias de locais poluídos, para designar o estado em se encontravam as ruas, nas duas obras analisadas, como fica evidente nos trechos: “As ruas estavam quentes e poeirentas” (Dickens, 1854, p. 129) e “O sol atacava direto as ruas poeirentas” (Figueiredo, 2010, p. 36). O segundo aspecto de similitude encontrado nos romances de Dickens e Figueiredo refere-se ao que Lefebvre (2001, p. 118) denomina de “pessoas mergulhadas no cotidiano”, conforme observamos nos fragmentos a seguir:



 

Havia ruas largas, todas muito semelhantes umas às outras, e ruelas ainda mais semelhantes umas às outras, onde moravam pessoas também semelhantes umas às outras, que saíam e entravam nos mesmos horários, produzindo os mesmos sons nas mesmas calçadas, para fazer o mesmo trabalho, e para quem cada dia era o mesmo de ontem e de amanhã, e cada ano equivalente do próximo e do anterior” (Dickens, 1854, p. 37).



 

E o movimento do ônibus, por caminhos tão bem marcados, as pistas abertas entre o casario pobre e sem fim - desde a fila no ponto final, em companhia de passageiros que ele já conhecia de vista - para não falar do esforço do motorista em conduzir o veículo, que se somava ao esforço do próprio motor barulhento e maltratado para carregar aquela gente, aquele peso, até o fim da linha - tudo isso sublinhava e confirmava toda semana o mesmo impulso. Assim, através das sextas-feiras, as semanas corriam sem parar, uma a uma, para dentro de outras semanas (Figueiredo, 2010, p. 149).



 

De acordo com as passagens supracitadas, notamos outra semelhança entre os livros: os personagens – todos eles sem nome – estão presos em rotinas tão frenéticas, quanto idênticas (casa – trabalho – casa), a tal ponto que não têm consciência de sua apatia, alienação, e, por isso, vivem tão automatizados quanto às máquinas com as quais trabalham, “para retomar à tarde o mesmo caminho e voltar para casa a fim de recuperar as forças para recomeçar tudo no seguinte” (Lefebvre, 2001, p. 118). Sem dúvida, é importante ressaltar que nos fragmentos acima surgem também dissonâncias, visto que, se por um lado, o narrador de Dickens relata que os trabalhadores do século XIX caminhavam até as fábricas, ou seja, moravam nos seus arredores, por outro, o narrador de Figueiredo descreve a jornada diária dos trabalhadores do século XXI, que precisam percorrer longos trajetos de casa para o trabalho, utilizando um transporte coletivo, que inexistia na Era Vitoriana: o ônibus. A terceira similaridade identificada nas obras Tempos Difíceis (1854) e Passageiro do fim do dia (2010) concerne à visão alienada e dissimulada que os patrões têm de seus empregados, como demonstram as passagens a seguir:



 

Digo-lhe agora os fatos. É o trabalho mais agradável que há, é o trabalho mais leve que há e é o trabalho mais bem pago que há. Mais do que isso, não poderíamos melhorar as fábricas, a não ser que forrássemos o piso com tapetes persas” (Dickens, 1854, p. 143).



 

Mesmo assim, ali, como em toda parte, achavam que já estavam pagando muito, que a despesa era excessiva, que os impostos eram altos, que as pessoas não sabiam economizar, que uma empresa moderna tinha de ter poucos empregados ganhando o mínimo possível (Figueiredo, 2010, p. 60).



 

É evidente, nos excertos acima, que os patrões, nos dois romances, são indiferentes às desumanas condições enfrentadas por seus empregados. Enquanto no primeiro trecho temos a fala de Bounderby, proprietário da indústria, no segundo temos a voz de um narrador onisciente. Entretanto, as duas obras, ao seu modo, criticam as horas excessivas de trabalho, as condições insalubres das fábricas – locais imundos, malcheirosos, com barulhos ensurdecedores –, os péssimos salários, bem como o desrespeito aos trabalhadores. É importante ressaltar que as primeiras leis trabalhistas surgiram apenas em meados de 1917, ou seja, na época em que o livro Tempos Difíceis foi escrito elas inexistiam, por esse motivo, é ainda mais problemático chegar à conclusão que, no século XXI, persistem as mesmas mazelas e penúrias sociais do século XIX. Esse descrédito aos trabalhadores transcende os patrões e alcança todos aqueles que pertencem a camadas mais elevadas da sociedade, conforme notamos nos fragmentos a seguir:

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A cidade fora arruinada tão frequentemente que era inacreditável que houvesse aguentado tantos golpes. Decerto nunca houve porcelana tão frágil como aquela com que foram feitas as fábricas de Coketown. Se forem manuseadas sem cuidado, quebrarão com tamanha facilidade que se poderia imaginar que eram defeituosas. Estavam quebradas quando deveriam ter mandado as crianças que trabalhavam para a escola; estavam quebradas quando foram nomeados inspetores para avaliar seu funcionamento; estavam quebradas quando os inspetores acharam duvidoso que se pudesse justificar o modo como o maquinário cortava as pessoas em pedaços; estavam em pedaços quando se sugeria que talvez não precisassem produzir tanta fumaça (Dickens, 1854, p. 129).



 

Levaram para o departamento médico: dessa vez, era um homem e o doutor lhe deu três dias. Disse para ela descansar, não se machucar de propósito só para ficar sem trabalhar, disse para ela não bancar a esperta que ele conhecia aqueles truques (Figueiredo, 2010, p. 155).



 

As passagens acima deixam explícito o modo que os trabalhadores são tratados. Ao passo que o primeiro trecho traz o grito de revolta do narrador de Dickens frente aos desmandos dos inspetores da fábrica, que “acharam duvidoso que se pudesse justificar o modo como o maquinário cortava as pessoas em pedaços” (Dickens, 1854, p. 129); no segundo excerto é narrada a história de uma personagem chamada Rosane, que havia ferido o pulso, enquanto trabalhava em uma fábrica de refresco, “em troca de quase nada” (Figueiredo, 2010, p. 158), apesar disso, o médico da companhia foi ríspido, pois acreditava ser conhecedor daqueles “truques”. Por fim, ressaltamos as simetrias encontradas na paisagem urbana marginalizada dos romances de Dickens e Figueiredo, conforme observamos nos fragmentos a seguir:



 

Na parte mais trabalhadora de Coketown; nas fortificações mais íntimas daquela feia cidadela, onde a natureza era mantida firmemente do lado de fora pelas mesmas paredes de tijolos que mantinham os ares e gases letais do lado de dentro; no coração do labirinto de pequenos quintais e ruas estreitas que foram trazidos à vida em partes, cada parte com a pressa violenta de servir ao propósito de um único homem, e o todo como uma família desnaturada cujos membros acotovelavam-se, pisoteavam-se e esmagavam-se uns aos outros até a morte; no recanto mais afastado daquela exaurida caixa de fumaça, onde as chaminés, por falta de ar que produzisse correntes, eram construídas numa imensa variedade de formas retorcidas e atrofiadas, como se em cada casa houvesse uma tabuleta assinalando o tipo de pessoa que se poderia esperar que nascesse ali” (Dickens, 1854, p. 78).



 

No Tirol, agora - e foi Rosane que chamou a atenção de Pedro para isso, um dia -, não havia mais quase nenhuma árvore. O sol atacava direto as ruas poeirentas, onde o capim cinzento só crescia a custo nos cantos dos muros e das pedras. Com o tempo, para abrigar as famílias em expansão, as casas foram aumentadas e desdobradas de tal modo que não havia mais terreno livre em quase nenhum dos lotes. Várias construções ocuparam até a calçada, às vezes ainda chegavam um pouco além e, assim, o traçado de algumas ruas mudou. Elas ficaram mais estreitas, sinuosas (Figueiredo, 2010, p. 36).

Contemplamos, a partir dos trechos acima, um cenário bem semelhante nos dois romances: “o mundo dos pobres” (Lefebvre, 2001) – um labirinto de construções sem nenhum planejamento, que servem de abrigo para um número de pessoas muito maior do que podiam comportar, por isso, são frequentes, nas narrativas, expressões que denotam ambientes asfixiantes, reduzidos e subdivididos à enésima potência. Além disso, é evidente que se tratam de lugares nos quais o meio ambiente encontra-se completamente degradado e desmatado. A poluição está por toda parte: no ar cinzento e tóxico, nas ruas por onde corre o esgoto a céu aberto. Fome, violência, invisibilidade e miséria perfazem essas cenas.

Ao longo de nossas análises, observamos que apesar de estarem situadas em séculos distintos – XIX e XXI – , essas obras carregam consigo semelhanças tanto no que diz respeito aos cenários descritos – ambientes poluídos, embebidos em óleo, com odores fétidos, que denotam a condição precária em que vivem as pessoas que ali trabalham/transitam – bem como no que se refere às péssimas condições sociais enfrentadas pelos trabalhadores – que estão presos em rotinas tão frenéticas, quanto idênticas: as horas excessivas de trabalho, os salários medíocres e as instalações insalubres das fábricas – locais imundos, malcheirosos, com barulhos ensurdecedores.

Portanto, podemos apontar, à guisa de uma prévia conclusão, que se tratam de dois séculos e uma cidade – a grande cidade industrial – visto que as dissonâncias se fizeram mínimas em nossas análises, referindo-se apenas a questões culturais e “avanços” tecnológicos próprios do século XXI. Vale ressaltar, conforme a representação literária confirma e a vida cotidiana evidencia, persistem no século XXI as mesmas mazelas e penúrias sociais do século XIX. 



 

REFERÊNCIAS:

DICKENS, Charles. Tempos Difíceis [1854]. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. 

FIGUEIREDO, Rubens. Passageiro do fim do dia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução: Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001.

PATROCÍNIO, P. R. T. Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo: um olhar sobre o naturalismo. In: CHIARELLI, S.; DEALTRY, G.; VIDAL, P. (Orgs.). O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. São Paulo: Companhia das Letras. 1994. 

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