COLUNA
Ruy Palhano
Ruy Palhano é médico psiquiatra.
Ruy Palhano

A Mentira Nossa de Cada Dia

A mentira é um fenômeno complexo que permeia todas as culturas e atravessa os tempos históricos, manifestando-se em todas as fases da vida humana, desde a infância até a velhice.

Ruy Palhano

A mentira é um fenômeno complexo que permeia todas as culturas e atravessa os tempos históricos, manifestando-se em todas as fases da vida humana, desde a infância até a velhice. Embora seja vista como algo moralmente reprovável na maioria das sociedades, é uma parte inevitável das interações sociais e das dinâmicas humanas. Para compreendê-la em sua totalidade, é necessário um olhar multidisciplinar que inclua a antropologia, psicologia e sociologia, além de uma análise sobre como a mentira se manifesta na infância, adolescência e na sociedade contemporânea.

Mentir, de forma simples, é a ação de distorcer ou ocultar a verdade com o objetivo de enganar. Essa distorção da realidade pode ocorrer de várias formas: através da omissão de informações, da alteração de fatos ou a produção de fatos irreais. A diferença essencial entre o erro ou o mal-entendido e a mentira está na intenção deliberada de enganar. A mentira é algo presente em todos os seres humanos e, por mais que seja vista como negativa, tem objetivos variados, como proteção pessoal, obtenção de vantagens ou fuga de situações desconfortáveis. Isso faz da mentira uma ferramenta socialmente funcional em determinadas circunstâncias, ainda que moralmente questionável.

Do ponto de vista antropológico, a mentira se manifesta de forma diversa em diferentes culturas, e sua aceitação varia de acordo com o contexto social. Em muitas sociedades, especialmente aquelas com fortes tradições religiosas ou códigos morais, a mentira é condenada. Entretanto, em alguns contextos, mentir pode ser considerado um recurso aceitável, uma forma de preservar relações sociais ou garantir a harmonia do grupo. Antropólogos como Marcel Mauss, ao estudar as trocas simbólicas em diversas sociedades, mostra que a mentira pode servir para evitar conflitos diretos e manter a coesão social. Assim, a mentira pode ter um papel funcional, ajudando a proteger vínculos sociais que poderiam ser rompidos pela exposição da verdade. A mitologia também oferece exemplos da importância da mentira em certas culturas: narrativas mitológicas muitas vezes distorcem a realidade para transmitir ensinamentos ou valores culturais, sugerindo que a fronteira entre verdade e mentira é, em certa medida, culturalmente construída.

No campo da psicologia, mentir é compreendido como um comportamento comum, mas que pode, em alguns casos, revelar desordens psicológicas mais graves, como a mitomania ou pseudologia fantástica (mentira patológica). A mitomania, por exemplo, é caracterizada por uma compulsão patológica para mentir, onde o indivíduo cria e sustenta mentiras que podem ser tão elaboradas que até ele próprio passa a acreditar nelas. Nesses casos, a mentira não é mais uma ferramenta de proteção social ou pessoal, mas uma distorção patológica da realidade. Ela pode estar associada a transtornos como a personalidade borderline ou antissocial, quadros maníacos do transtorno bipolar, quadros delirantes e alucinatórios, entre outros transtornos. Além disso, a mentira também pode ser um reflexo de processos psicológicos inconscientes, como a racionalização e a auto enganação, que permitem que o indivíduo crie versões da realidade para evitar confrontos internos ou externos. A psicologia, portanto, explora a mentira tanto como um fenômeno funcional em contextos específicos, quanto como um sinal de desordens mais profundas.

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Na sociedade contemporânea, a mentira adquiriu novas dimensões com a ascensão das redes sociais e da comunicação digital. O fenômeno das fake news é um exemplo claro de como a mentira pode ser usada em larga escala para manipular a opinião pública e influenciar decisões políticas. A internet e as redes sociais facilitaram a disseminação rápida de informações falsas, criando um ambiente onde a verdade e a mentira coexistem de maneira confusa. A chamada "pós-verdade" reflete essa situação, em que fatos objetivos muitas vezes perdem importância diante de narrativas emocionais ou convincentes, mesmo que sejam falsas. A mentira, nesse contexto, deixou de ser um fenômeno individual para se tornar um mecanismo de manipulação coletiva, afetando a confiança pública nas instituições e gerando uma cultura de desconfiança.

Apesar de toda a complexidade da mentira nas esferas sociais, ela começa cedo na vida de um ser humano. Crianças muito pequenas já são capazes de mentir, ainda que suas mentiras sejam mais fantasiosas e fruto de uma dificuldade em distinguir entre a imaginação e a realidade. Pesquisas mostram que, a partir dos dois anos de idade, as crianças já começam a testar os limites da verdade e a experimentar as primeiras mentiras. Essas mentiras infantis têm, muitas vezes, uma função de aprendizado, à medida que a criança começa a entender as regras sociais e as consequências de suas ações. Com crescimento natural das crianças suas  mentiras se tornam mais sofisticadas, acompanhando o desenvolvimento de sua capacidade cognitiva e social.

Durante a adolescência, a mentira assume novas funções. Os adolescentes mentem com frequência para ocultar comportamentos que sabem que não serão aprovados pelos pais ou para criar uma identidade social entre os pares. A necessidade de autoafirmação e independência faz com que a mentira seja uma estratégia comum nesse período de transição, tanto para escapar de repreensões quanto para manter um certo controle sobre suas próprias vidas. Ao mesmo tempo, a mentira na adolescência pode ser um sinal de problemas mais profundos, como dificuldades emocionais ou insegurança em relação a sua autoimagem. Nesse sentido, a mentira pode ser vista tanto como uma fase normal do desenvolvimento,  quanto como um alerta para questões psicológicas que precisam de atenção.

A mentira, em suma, é um fenômeno humano universal, presente em todas as fases da vida e em todas as sociedades. Desde as pequenas mentiras do dia a dia, que servem para evitar conflitos ou constrangimentos, até as grandes manipulações coletivas que moldam o cenário político e social, a mentira desempenha um papel central nas relações humanas. Seja como uma ferramenta de autopreservação ou como um sintoma de desordens psicológicas e psiquiátricas, a mentira nos revela aspectos profundos da complexidade da mente humana e das dinâmicas sociais. No mundo contemporâneo, onde a fronteira entre verdade e mentira está cada vez mais difusa, a compreensão desse fenômeno se torna ainda mais crucial para que possamos navegar nas intrincadas tramas das relações interpessoais e sociais.

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