O Sol de Sebastião sobre as trevas do júri
O júri há muito perdeu sua identidade, condena pelo espetáculo e não pela verdade, e sobrevive apenas como uma liturgia simbólica.
Na última semana, muito se falou sobre o “Crime da 113 Sul. ”
O caso refere-se a um triplo homicídio ocorrido em agosto de 2009, em um apartamento na quadra 113 Sul, Asa Sul, em Brasília. No local, foram encontrados os corpos de José Guilherme Villela (ex-ministro do TSE), de sua esposa Maria Villela e da empregada doméstica Francisca Nascimento da Silva, todos vítimas de um ataque brutal, que lhes desferiu um total de 78 facadas.
A investigação policial concluiu que o crime foi orquestrado para simular um latrocínio, mas, que na verdade, teria sido encomendado pela filha do casal, Adriana Villela, em troca do dinheiro de seus pais.
Fiquei interessada pelo assunto a partir de uma entrevista concedida pelo advogado de defesa de Adriana Villela, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que classificou o caso como “escatológico”.
Acabei consumindo todas as informações que pude acessar, assisti a documentários, canais de youtube, ouvi podcasts, os quais enfrentaram o assunto sob avaliações de renomados advogados criminalistas do país, que acompanharam, inclusive, o julgamento de Adriana Villela pelo Tribunal do Júri, e entre todos os especialistas há unanimidade: existem dúvidas substanciais que vão muito além do razoável, em relação a participação de Adriana Villela como a mandante do triplo homicídio.
Dizer que a delegada que conduziu a investigação inicial, foi condenada a mais de 16 anos de prisão por fraude processual, falsidade ideológica, violação de sigilo profissional e tortura já deveria ser o suficiente para esta conclusão.
Leonardo, o ex-porteiro do prédio das vítimas, confessou que matou as vítimas para roubar e negou, por várias ocasiões, ter recebido dinheiro de Adriana para cometer o crime, no entanto, depois de um tempo disse ter sido pressionado a envolvê-la.
A acusação não conseguiu demonstrar, concretamente, como Adriana teria planejado, contratado e pagado o executor. Não há registros de telefonemas, e-mails, mensagens ou testemunhas diretas que comprovem que Adriana contratou os assassinos. Não foram encontrados nas investigações indícios de movimentações financeiras atípicas ou promessas de pagamento.
Enquanto isso, a defesa conseguiu fazer o mais difícil, produzir prova negativa do crime, demonstrando que seria impossível Adriana ter participado daqueles crimes.
Outro ponto relevante é que Adriana não foi excluída da herança dos pais.
Porém, ainda assim, Adriana Villela foi pronunciada e condena a elevadíssima pena de 67 anos pelo Tribunal do Júri, pena reduzida para 61 anos pelo TJDFT.
A defesa tenta a anulação do júri por sustentar que o veredito do Conselho de Sentença foi contrário à evidência dos autos, diante de robustas provas da inocência de Adrian Villela.
No último dia 11 de março, o relator do caso, Ministro Rogério Schietti, votou contra o recurso da defesa, rejeitando o pedido de anulação do júri, e a favor da execução imediata da pena e eis que aqui se origina a minha inspiração para escrever esse artigo, na medida em que o ministro, por quem nutro profunda admiração, na minha opinião, se viu entre a cruz da formalidade e a espada da injustiça.
O ministro relator reconheceu que as investigações tiveram falhas, incluindo aqui a condenação da delegada por manipulação de provas, mas acabou por concluir que o Tribunal do Júri tem soberania sobre suas decisões, que os jurados tiveram acesso às provas dos autos, que acompanharam os longos debates do julgamento, sendo que não há indícios de que tenham chegado a uma conclusão manifestamente contrária às provas constantes dos autos.
O foco do nosso debate incide nas palavras do Ministro relator, quando concluiu que, se fosse o dito processo julgado por um juiz togado, necessariamente, seriam exigidas e observadas todas as garantias constitucionais da acusada, especialmente, no que se refere ao standard probatório e a motivação da decisão, ou seja, para uma condenação que venha a interferir na liberdade humana é necessário que o julgador togado esteja certo, seguro de que o crime aconteceu e que o acusado tenha concorrido para o crime.
A dúvida, decorrente da inafastável presunção de inocência, deve sempre prevalecer a favor do réu.
Todavia, no universo do tribunal do júri não é possível exigir o controle das decisões dos jurados, que são cidadãos leigos, sem formação jurídica, e que julgam de acordo com emoção e convicção íntima e subjetiva, ou seja, não se exige nenhum grau de certeza e a dúvida não vincula à absolvição.
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Em resumo, o ministro concluiu que, se a decisão do conselho de sentença encontrar alguma consonância com aquilo que consta do processo, esta deverá ser mantida, em respeito à soberania dos vereditos que é uma garantia constitucional, mesmo que aos olhos de um magistrado togado outra pudesse ser a decisão a tomar.
Após o relator negar o recurso da defesa, o Ministro Sebastião Reis Júnior pediu vista dos autos.
Acredito que estejamos diante de um momento muito importante para a sociedade, para a defesa criminal e sobretudo, para os acusados que são submetidos ao sistema do tribunal de júri, o qual, na minha opinião, é anacrônico e incompatível com a lógica do standard probatório, ante ausência de racionalidade epistêmica verificável.
Não irei abordar sobre o funcionamento do tribunal do júri, se é ou não um escudo para validar decisões erradas, especialmente porque não sou nenhum pouco entusiasta do sistema, mas sim, se o fato do ministro ter reconhecido que talvez se um juiz togado julgasse Adriana Villela, esta poderia ser absolvida ante a dúvida para além do razoável de sua participação no crime, todavia, não poderia se desvincular do Princípio da Soberania dos Vereditos do Tribunal do Júri, razão pela qual manteve a condenação da recorrente de 61 anos de prisão, com a imediata execução da pena.
E daí surge a reflexão: A obrigatoriedade em defender a soberania do Tribunal do Júri mesmo diante da dúvida sobre a suficiência das provas, pode ser comparado à atitude de Pôncio Pilatos no julgamento de Jesus Cristo?
A pergunta surge porque em ambos os casos envolvem uma decisão judicial que, em vez de corrigir uma possível injustiça, se apoia em um argumento formal, reduzindo os julgadores a meros validadores de jurisprudências e não a guardiões da Justiça.
No evangelho segundo João, Pilatos não encontrou culpa em Jesus, ao contrário disso, ele percebeu que a acusação era frágil e motivada por interesses políticos e religiosos, contudo não poderia contrariar a “soberania” da vontade popular.
A grande questão é: será que o papel da justiça, seja na figura de um governador romano ou de um ministro do STJ, deve se limitar a seguir um rito processual ou deve garantir que a Justiça realmente seja feita?
Será que não estamos no momento de sustentar uma reforma no sistema de justiça, no que se refere ao Tribunal do Júri, de modo a se garantir a mesma prudência de William Blackstone, quando sustentou que “É melhor que dez culpados escapem do que um inocente sofra?”
Não seria momento de se buscar a verdadeira função do júri, de modo a produzir decisões racionais, técnicas e menos simbólicas, ritualísticas e teatrais, que só têm servido para demonstrar uma “justiça pública dramatizada?
O julgamento deste caso midiático, muito embora estejamos diante de uma acusada branca, de classe média alta, pode ser um divisor de águas na vida daqueles que realmente são vítimas desse sistema tão injusto: os pretos e pobres. Sabemos que, neste país, o encarceramento tem cor.
O júri há muito perdeu sua identidade, condena pelo espetáculo e não pela verdade, e sobrevive apenas como uma liturgia simbólica.
Que venha a libertação desta corrente; que venha a liberdade histórica, na acepção mais ampla da palavra, no voto do Ministro Sebastião Reis Júnior.
Sâmara Costa Braúna - Advogada Criminalista
Revisão do texto: Mônica Mendes - Advogada Familiarista
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