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Gaia em Alerta
Naiara Valle é bióloga com vasta experiência na Amazônia Legal em conservação, restauração e políticas públicas. Preside o Instituto Ecos de Gaia e comanda viveiros, SAF, mecanismos de carbon
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Da Crocância ao Colapso: o que o “morango do amor” revela sobre nós?

Em 2025, bastaram alguns segundos de vídeos bem editados, um som de “croc” e uma estética adocicada para transformar o “morango do amor” — morango recheado com brigadeiro e calda de açúcar — em uma febre nacional.

Naiara Valle

Em 2025, bastaram alguns segundos de vídeos bem editados, um som de “croc” e uma estética adocicada para transformar o “morango do amor” — morango recheado com brigadeiro e calda de açúcar — em uma febre nacional. Em questão de semanas, os pedidos do doce cresceram mais de 2.300% no iFood, filas se formaram nas docerias e a fruta se tornou símbolo de status nas redes sociais. O fenômeno, à primeira vista inofensivo, diz muito mais sobre o nosso tempo do que imaginamos.

Trata-se de um exemplo cristalino do chamado “efeito manada digital”: quando decisões individuais são substituídas por comportamentos coletivos automatizados, guiados por algoritmos que reforçam conteúdos populares e promovem recompensas emocionais imediatas — likes, comentários, pertencimento. As redes sociais, controladas por gigantes da tecnologia, funcionam como verdadeiros laboratórios de comportamento, onde o desejo é moldado, repetido e vendido em escala industrial.

Mas o ponto central não é o doce. É o que ele revela: estamos anestesiados pelo entretenimento e capturados por dinâmicas que priorizam consumo rápido e descartável, em um planeta cujos limites físicos já foram ultrapassados. Em meio a uma crise climática sem precedentes, em que eventos extremos se tornam rotina, populações vulneráveis perdem suas casas e modos de vida, e ecossistemas inteiros colapsam, escolhemos viralizar guloseimas.

É aqui que mora a contradição fundamental. As mesmas redes que transformam sobremesas em status poderiam, com a mesma força, amplificar causas urgentes, práticas regenerativas, soluções climáticas locais e saberes ancestrais. Já vimos exemplos promissores: campanhas ambientais como #ZeroWasteWeek e #FoodPrint2025 mobilizaram milhões de jovens globalmente. Mas elas ainda são exceção.

Enquanto isso, o modelo capitalista segue se alimentando da lógica do clique, da tendência, da falsa escassez emocional. Essa estrutura, ao converter atenção em lucro e engajamento em capital, transforma até a crise climática em produto — algo para ser “consumido” como conteúdo, não enfrentado com seriedade.

Não se trata de criminalizar o desejo ou o prazer de seguir uma trend. Mas é urgente que a sociedade — especialmente quem comunica, empreende ou educa — reflita sobre o tipo de cultura digital que estamos alimentando. Queremos um sistema que nos ensine a desejar apenas o próximo produto da moda? Ou podemos usar esse mesmo poder de conexão para cultivar senso crítico, empatia coletiva e coragem para enfrentar o colapso climático?

Se o algoritmo molda desejos, que tal ensiná-lo a viralizar soluções? Que tal desafiar as bolhas com conhecimento, mobilizar redes para a agroecologia, a restauração florestal, a justiça hídrica? O que viraliza diz muito sobre nós — e talvez o “morango do amor” tenha vindo nos lembrar disso.


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