Poesia e Filosofia
Reproduzo aqui o texto do escritor e jornalista Mhario Lincoln acerca do meu primeiro livro de poesia, intitulado O mar de vidro (2023).
Nas quase 100 páginas do livro O mar de vidro (2023), de Gabriela Lages Veloso, atentei, mais especificamente, para os motes do recomeço, do rever, da reconstrução, do reviver, porque aí estão parte maior da lógica embrionária da construção poética de Gabriela; sua maneira real de ser e de se ter. Não há como negar uma ligação evidente deste belo livro de poesias, com a cronologia literária de Gabriela Lages Veloso, pois o seu fazer poético, nesta obra, a fez mostrar um explícito amadurecimento lírico.
Desta forma, ela alcança, com seu mergulho nesse “mar de vidro”, uma profundidade abissal e revela acuidades inimagináveis, cuja compreensão do texto, passa obrigatoriamente por um conhecimento filosófico igualmente maduro e que foge literalmente de estereótipos, geralmente intrínsecos à linguagem poética comum.
Destarte, me sintonizei em alguns poemas — para mim — bússolas orientadoras do ritual gabrielístico do verso, isto é, ultima ratio dessa produção intelectual. Tomei a liberdade de interpretar cada um desses poemas, como uma visão coletiva, abundante, universal; não apenas, atentando para princípios da equidade morfológica. Mas, para que eu pudesse estabelecer uma ligação da obra com suas reais características, tive que convidar para a mesma mesa, alguns dos principais pensadores filosóficos a fim de fundamentar minha visão do recomeço, da reconstrução e revisão.
Começo com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que, em sua obra Assim Falou Zaratustra, que discute a ideia do “eterno retorno”: a vida e todos os eventos nela são cíclicos. Há uma espécie de repetição dos acontecimentos como parte fundamental da existência. Ou seja, ideias a comparar com recomeço e reconstrução, implícitas nos versos de Gabriela, por mim escolhidos. Da mesma forma, Søren Kierkegaard, filósofo dinamarquês, que abordou o tema da reconstrução e revisão pessoal, bem como da necessidade de reconstruir a si mesmo, através de um comprometimento com valores autênticos e significativos.
Importantíssima essa conexão da obra de Gabriela Lages Veloso com esses pensadores, especialmente pela ideia de que a reconstrução e a revisão implícitas no conteúdo simbiótico da criação, não são apenas temas literários, mas também questões filosóficas fundamentais que permeiam a condição humana, inclusive, no que tange ao recomeço. Se não, vejamos:
(Re)começo
Dias iguais, formam pessoas
iguais, que vivem vidas iguais.
E, assim, o ciclo recomeça.
Até o instante em que um
livro é aberto. E a realidade
salta diante de um par de
olhos atentos, de alguém
que será tachado de ridículo
por pessoas ocupadas pelo
cotidiano. Tanto tempo se
passou, mas ainda temos
medo de sair da caverna.
(Veloso, 2023, p. 62).
Esse ciclo repetitivo é representado pela ideia de dias iguais, pessoas iguais e vidas iguais, sugerindo uma rotina entediante e sem mudanças significativas. Chamou-me também a atenção os versos finais: “Tanto tempo se/ passou, mas ainda temos/ medo de sair da caverna”. Imediatamente, tais versos finais me levaram até a mesa de Platão e sua “Alegoria da Caverna”, onde os prisioneiros simbolizam a humanidade presa a percepções limitadas do mundo sensível, sem perceber realidades mais amplas.
Só isso já bastaria para comprovar a maturidade de quem quer realmente poetar com segurança admirável. Gabriela Lages Veloso mostra amplitude sensível, misturando sua sensibilidade à filosofia. E mais: a autora aproveita, inclusive, para dar um leve ‘puxão de orelhas’ em parte da humanidade, ainda presa à condição de “escrava nas cavernas”, ignorando a busca pela verdade e preferindo a comodidade das ilusões, em vez de questionar e buscar conhecimento mais profundo, isto é, traduzindo-se numa grave inércia intelectual.
E por fim, aplaudo o poema (Re)construção, onde muito dessa desconstrução de (pré-conceitos) e a relocação de um novo olhar sobre o mundo, são efervescentes. Louvo, ainda, a metáfora do muro: uma corajosa representação das barreiras mentais e emocionais que criamos ao longo da vida, baseadas em conceitos pré-estabelecidos. Ipsis litteris:
(Re)construção
Desde crianças, somos ensinados
a ver o mundo. Ver e não-ver.
Decoramos (pre)conceitos, que
formam muros tão altos, que
somente o conhecimento pode
ultrapassar. Mas, a cada nova
descoberta e exercício de empatia,
são criadas frestas nesse alto muro.
E através delas surgem pequenos
fachos de luz. Luz que nos deixa
temporariamente cegos, e, talvez,
por isso, nos faça enxergar, por
um instante, para além de tudo
aquilo que já havíamos visto antes.
(Veloso, 2023, p. 63).
Na incrível formulação poética: “Decoramos (pre)conceitos, que/ formam muros altos, que/ somente o conhecimento pode/ ultrapassar”, esse conhecimento é condição sine qua non para acionar o start de crescimento em qualquer atividade que abraçarmos. Isso ratifica o visível alcance intelectual da autora: vi aqui, quase uma mesma relação com a poesia de Friedrich Hölderlin, que surfou com agilidade na filosofia de Kant, Fichte, Schelling e Hegel. Ou seja, O mar de vidro (2023) tem a harmonia lírica da poética, entrelaçando-se com as ideias filosóficas, e fazendo transcender às fronteiras normais entre o poetar ainda “de vez” e a construção poética madura e eficiente.
Finalizo confidenciando minha emoção ao ler: “Agendas cheias de/ compromissos vazios/ [...] Esse é o papel/ da arte: trazer um sopro/ de vida aos nossos dias”, parte do poema “(Re)viver” (Veloso, 2023, p. 64), que ressalta o papel vital da arte na experiência humana. Gabriela destaca, de forma pontual, a importância de buscar na arte uma forma de resistência à monotonia e à indiferença, encontrando nela (arte), um meio de despertar para a vida e para a complexidade do mundo ao nosso redor.
Tais excertos são fundamentais para dar liga ao mundo poético e ao pensamento humano literal, através de axiomas filosóficos que enriquecem – e muito. O mar de vidro (2023) é, sem dúvida, no meu bestunto, um livro-âncora para navegar com segurança por um mar de grandes emoções, que cada um traz em si.
REFERÊNCIAS:
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003.
PLATÃO. O mito da caverna. In: A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000.
VELOSO, Gabriela Lages. O mar de vidro. Belo Horizonte: Caravana, 2023.
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SOBRE O ENSAÍSTA: Mhario Lincoln é advogado, jornalista, Presidente da Academia Poética Brasileira e Editor-Sênior do www.facetubes.com.br
As opiniões, crenças e posicionamentos expostos em artigos e/ou textos de opinião não representam a posição do Imirante.com. A responsabilidade pelas publicações destes restringe-se aos respectivos autores.
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