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COLUNA
Isaac Viana
Isaac Viana é psicólogo, mestre em Cultura e Sociedade, professor universitário e escritor.
Isaac Viana

O mundo depois do medo

Quem sabe Clarice Lispector é quem está certa quando afirma que “Depois do medo, vem o mundo”.

Isaac Viana

Atualizada em 18/02/2025 às 15h17

Deve haver, mas eu não conheço ninguém que não goste de ouvir uma boa história de terror – o famoso causo –, de preferência sendo proferida por um ancião ou anciã, em algum lugar longínquo, fora da zona urbana, perto de matas e rios que refletem o luar de noites pacatas e misteriosas.

Essa é uma experiência que costuma remeter à infância, não apenas à nossa, mas a do mundo, quando a razão ainda não havia decretado a caça às bruxas e a imaginação era livre da culpa da ignorância, porque, na verdade, era a sabedoria herdada de geração após geração, sobrevivendo pela tradição oral e ajudando o homem a construir sentido para sua existência sempre eivada de dilemas.

Lembro de um livro lido há pouco tempo, Terror na Amazônia (2020), que reúne contos de escritores brasileiros contemporâneos e presenteia o leitor exatamente com sensações como as descritas acima. Mitos e lendas da região norte do Brasil são reinventadas, sempre oferecendo ao leitor a sensação familiar de já ter ouvido falar de história semelhante antes; conhecido alguém que contou e/ou vivenciou experiência parecida.

Durante a leitura, várias vezes tive essa impressão de estar sentado junto a uma roda de pessoas, ouvindo um velhinho contando um causo acontecido com ele ou algum conhecido. Foi uma experiência literária sinistra e prazerosa ao mesmo tempo, que me faz pensar o quão paradoxal pode ser temer e desejar algo simultaneamente.

Ainda nesse sentido, outro mistério que identifico ao consumir obras de terror passa pela seguinte questão: os demônios se alimentam de nossas fraquezas para se apoderarem de nós ou somos nós que nos utilizamos de demônios para justificar nossas fraquezas? Essa parece ser a questão principal que Shirley Jackson, escritora estadunidense, aborda em A assombração da casa da colina (1959).

Dr. Montague, experiente pesquisador de fenômenos paranormais, pretende escrever um livro definitivo, com abordagem científica, relacionando casas mal-assombradas ao desenvolvimento de transtornos psíquicos em seus residentes.

Após extensa pesquisa, descobre a fama da Casa da Colina, que, ao longo de oitenta anos, já repeliu diversos moradores e onde diversas situações bizarras e mal explicadas se deram. É lá que ele decide coletar material para o seu livro.

Mas ele não vai sozinho; leva mais três pessoas consigo, Eleanor, Theodora e Luke. O papel deles é, assim como o do doutor, tomar nota de qualquer acontecimento que possam julgar estranho na Casa.

O que, no começo, parece um divertido acampamento de férias, aos poucos vai se tornando num pesadelo de olhos abertos. Coisas estranhas começam a acontecer na Casa da Colina, que, ao que tudo indica, está viva e lentamente se impõe, ora com estrondos ora no silêncio, aos seus visitantes, sobretudo a Eleanor, que, por algum motivo desconhecido, parece ter chamado a atenção da Casa mais do que os demais.

Nesse memorável terror psicológico, a escritora, que influenciou nomes como Stephen King e Neil Gaiman, muito sutilmente vai enredando o leitor – ao mesmo tempo em que a Casa enreda os hóspedes – com descrições minuciosas, por vezes beirando o onírico, tanto do ambiente físico quanto subjetivo das personagens, propiciando uma imersão peculiar na obra.

Parece-me que, pelo menos na ficção, medo e prazer estão longe de estarem descolados um do outro, assim como o natural e o sobrenatural denotam ter mais coisas em comum do que costumamos pensar. Quem sabe Clarice Lispector é quem está certa quando afirma que “Depois do medo, vem o mundo”. Se não há mundo sem medo, contar e ler histórias sobre essa, que é uma das mais primitivas emoções humanas, pode ser ponte para melhor convivência com ele, além de caminho para aperfeiçoamento pessoal de quem escolhe, a despeito das circunstâncias amedrontadoras, ir adiante.

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