(Divulgação)
COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Degraus de gratidão

Os fiéis desciam lentamente a escadaria, com terços nas mãos e promessas no coração.

Kécio Rabelo

Um dia de semana normal, a agenda cheia de compromissos. Quebrei a tarde no meio e fui a Ribamar, cidade que abriga o santuário de São José, padroeiro do Maranhão. O sol intenso dourava as torres da igreja, que, com seu azul turquesa, pareciam plantadas em meio à praça clara. Os fiéis desciam lentamente a escadaria, com terços nas mãos e promessas no coração. Era o fim da missa das três da tarde. Ainda pude sentir, no rosto, a água benta que, junto das bênçãos, ajudava a amenizar o calor, enquanto o murmúrio das rezas se misturava ao som das sandálias batendo no chão da igreja.

Sentado num dos degraus, o vendedor de terços ajeitava suas caixas de lembranças: pequenas imagens de santos, escapulários, medalhinhas. Ao lado, o picolezeiro, com o isopor quase vazio, descansava à sombra, abanando-se com a tampa da caixa.

— Hoje foi bom o movimento — comentou o picolezeiro, observando os que ainda subiam para pagar promessas. — Se todo dia fosse assim, era bom. Mas, sabe, o problema é que quase nunca a gente sabe como vai ser o amanhã. Tem hora que dá medo das mudanças que a vida traz.

O vendedor suspirou, ajeitando o chapéu gasto:
— Medo a gente sempre tem, meu amigo. Mas a fé é o que mantém a gente de pé. Não tira as dificuldades, mas dá força para enfrentá-las.

— E as pessoas? Será que ajudam mesmo? — insistiu o picolezeiro. — Porque, às vezes, parece que cada um olha só para o próprio lado. Sobem e descem correndo, sem nem dar um bom dia, um boa tarde. A gente parece invisível. Mesmo esses que vêm rezar não falam com a gente, que estão vendo, mas acreditam que vão falar com Deus, que não veem… — disse, com certa indignação.

O vendedor sorriu de leve:
— Nem sempre, nem todos ajudam. Mas, quando ajudam, a vida fica mais leve. Outro dia ouvi, na televisão, uma palavra bonita: empatia. Acho que é assim que dizem. Pois é isso: empatia é como sombra em dia de calor. Sem ela, o caminho é pesado demais.

Nesse instante, uma senhora de cabelos brancos, subindo devagar os degraus, parou perto deles. Trazia nas mãos flores brancas — lírios, talvez — e lágrimas nos olhos.

— Escutei a conversa de vocês… — disse com voz suave. — Vim hoje só agradecer. Há um ano, vim aqui pedir pela saúde do meu neto, e ele se recuperou. Trouxe flores para São José, mas também quero agradecer às pessoas que encontrei no caminho. Foram muitas. Algumas fizeram coisas que eu jamais poderia fazer; outras apenas ficaram comigo, às vezes em silêncio, só presentes. Foram meses de internação, um medo terrível do que poderia acontecer. Mas, em cada abraço, eu sentia a calma que procurava. Hoje agradeço a saúde dele, mas agradeço também a vida dessas pessoas. Cada gesto desses foi como um empurrãozinho de Deus, um jeito de me lembrar que eu não estava sozinha. Isso me ajudou tanto… que acho que me tornei alguém um pouco melhor: menos focada em mim mesma, com um olhar menos egoísta.

O picolezeiro passou a alça azul da caixa pelo pescoço, como quem já se despedia, e respondeu emocionado:
— A senhora fala bonito… É isso mesmo: a gratidão. A gente esquece que retribuir o bem, às vezes com um sorriso, já muda tudo. Mesmo essa gente que vem aqui… Uns chegam de carrão, outros de van, outros a pé — mas todos têm um fardo. E sabe? Às vezes a gente só vê a cara feia e já julga. Mais fácil seria tentar, de alguma forma, aliviar.

O vendedor completou:
— É. Outro dia ouvi o padre dizer daqui mesmo: quem aprende a agradecer nunca anda sozinho. O coração que reconhece o bem abre espaço para novas bênçãos. Achei isso bonito. Até anotei aqui na minha caderneta de vendas.

A senhora sorriu, como quem confirma com a alma. Subiu os últimos degraus e entrou na igreja, deixando no ar a lição — e o perfume das flores.

O silêncio ficou entre os dois homens por alguns segundos. Até que o picolezeiro deu dois tapinhas no ombro do vendedor e disse:
— Vou guardar isso, meu amigo. Da próxima vez que alguém me comprar um picolé, vou oferecer também um sorriso. Vai que seja isso o que a pessoa mais precisa naquele dia. Não custa nada — e ainda faz bem. Tá cheio de gente bonita com o coração machucado.

O vendedor riu:
— Pois é. Retribuir não custa nada, mas vale muito.

Fiquei ali, naquela tarde, naquela escadaria e naquela sombra, entre o eco das Ave-Marias que vinham de dentro da igreja e o vai e vem dos fiéis, tentando entender — e, quem sabe, crer — que a fé não se mede apenas nas orações, mas no modo como se retribui a vida com gratidão.

Não sei dizer se rezei direito ou se a oração que fui fazer foi ouvida. Isso não sei. O que sei é que ganhei a viagem naquele encontro que me levou não ao pé do altar, onde repousa a imagem milagrosa de São José, mas àqueles degraus, aos pés do coração — para lembrar que oração sem gratidão é só palavra; gratidão é quando a palavra vira gesto. É no gesto que o amor se concretiza.

Voltei agradecido.


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