(Divulgação)
COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Olhos D’Água

Conceição Evaristo é uma das principais escritoras da literatura brasileira contemporânea. Em 2014, publicou, pela Pallas Editora, o livro Olhos D’Água.

Gabriela Lages Veloso

 
 

Conceição Evaristo é uma das principais escritoras da literatura brasileira contemporânea. Além de poeta, contista e romancista, é uma importante pesquisadora no campo dos estudos literários e afro-brasileiros. Em 2014, publicou, pela Pallas Editora, o livro Olhos D’Água, que é composto por quinze contos. O conto homônimo ao livro Olhos D’Água (2014), de Conceição Evaristo, é narrado em primeira pessoa por uma protagonista que, em momento algum, é nomeada. 

Esses procedimentos narrativos indicam, ao menos, duas questões importantes: em primeiro lugar, por estar em primeira pessoa, a voz narrativa se aproxima ainda mais dos leitores e leitoras, despertando suas próprias memórias. Em segundo lugar, o fato de não ter um nome (inclusive, nenhuma das personagens desse conto é nominada), indica que essa mulher trata-se de todas, e qualquer uma. Representa as mulheres negras de modo geral. Em um dia qualquer, essa mulher sem nome, desperta bruscamente com uma pergunta inusitada  – que se tornará a questão central da história – em sua mente:

“De que cor eram os olhos de minha mãe? Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou em uma dolorosa pergunta carregada de um tom acusativo. Então eu não sabia de que cor eram os olhos de minha mãe?” (EVARISTO, 2014, p. 11).

A narradora-personagem de Olhos D'água (2014) era a primeira de sete filhas, por isso, precisou amadurecer rápido e dar conta de suas próprias dificuldades. Muito mais do que uma filha mais velha, tornou-se  uma grande amiga para sua mãe. “Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer, em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias” (EVARISTO, 2014, p. 11). Como a conhecia muito bem, e lembrava com nitidez de vários detalhes de seu corpo, achava muito estranho não conseguir lembrar-se da cor de seus olhos.

Na tentativa vã de recordar-se, a protagonista tem várias memórias de infância, que, por vezes, coincidem com as memórias da infância de sua mãe. A presença constante da fome, e da insalubridade persistiam. É válido salientar que em cenários cruéis como esse, algumas mães, mesmo que inconscientemente, descontam as suas dores e raiva nos filhos, e acabam sendo violentas com as crianças. Como um exemplo disso, podemos citar o conto Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos (2014), de Conceição Evaristo. Contudo, ocorre o oposto, no conto que estamos analisando. A mãe sem nome “deixando por uns momentos o lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias [...] se tornava uma grande boneca negra para as filhas” (EVARISTO, 2014, p. 11). Ela brincava com as meninas nos momentos de maior dor, fome e desamparo. Usava da imaginação para tentar esquecer as dificuldades, mas, principalmente, para distrair as crianças.

“E era justamente nesses dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes, colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco. As flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. [...] Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía” (EVARISTO, 2014, p. 12).

As crianças se divertiam e distraiam com as brincadeiras da mãe, sorriam inocentemente. Mas a mãe “só ria de uma maneira triste e com um sorriso molhado” (EVARISTO, 2014, p. 12). Em dias de fortes chuvas, mais uma vez o seu coração ficava cheio de angústia e preocupação. Em cima da cama, ela tentava proteger as filhas com um abraço apertado, temendo que o frágil barraco desabasse sobre elas. Então, “com os olhos alagados de prantos balbuciava rezas a Santa Bárbara [...] Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia!” (p. 12). Após todos esses tristes flashbacks, a narradora-personagem volta ao tempo presente e revela como chegou em um lugar tão distante da sua cidade natal:

“Então, por que eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela? E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para mim e para minha família: ela e minhas irmãs tinham ficado para trás. Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas de minhas tias e de todas as mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias” (EVARISTO, 2014, p. 12).

A protagonista saiu da cidade natal para buscar uma vida mais digna e confortável para ela e sua família, e conseguiu, graças ao apoio de sua mãe. O trecho acima demonstra ainda como a narradora-personagem valoriza a questão da ancestralidade e do sagrado feminino: revela que tudo que se tornou foi com o auxílio de sua mãe, irmãs, tias e, até mesmo, de suas ancestrais desde a África. Sua sabedoria, e, consequentemente, seu poder provém delas. Com o passar do tempo, a protagonista foi ficando mais aflita, pois permanecia sem resposta, ainda não conseguia lembrar a cor dos olhos de sua mãe.

“E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos de minha mãe, naquele momento resolvi deixar tudo e, no dia seguinte, voltar à cidade em que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para nunca mais esquecer a cor de seus olhos. Assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta da cor dos olhos de minha mãe [...] após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe” (EVARISTO, 2014, p. 12-13).

A narradora-personagem, então, teve uma surpresa: viu somente muitas lágrimas, e enfim compreendeu que sua “mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum!” (EVARISTO, 2014, p. 13). Nesse momento da narrativa, os leitores conseguem entender que a cor dos olhos da mãe da protagonista é metafórica: ela sempre estava chorando, por tristeza ou alegria, por isso, tinha olhos d’água, rios “calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície” (p. 13).

Para a narradora-personagem, saber a cor dos olhos da mãe era como conhecer a sua alma. Uma alma profunda e forte, que apesar da aparente fragilidade e sensibilidade, era extremamente resistente e guerreira. Pois sentir intensamente a vida, na verdade, é uma força, e não uma fraqueza. Vale ressaltar que, de acordo com Chevalier & Gheerbrant (2001), o espelho é símbolo da alma, da sabedoria, da identidade, de uma mudança de perspectiva, e, de uma inversão da realidade e da lógica. E os olhos são o espelho da alma, se conheço os seus olhos, logo, conheço a sua alma. Por esse motivo, a protagonista também quis conhecer a cor dos olhos de sua filha:

“Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma se tornam o espelho para os olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente no meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho, como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: — Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?” (EVARISTO, 2014, p. 13).

Desse modo, através de uma simples brincadeira, a protagonista acabou conhecendo a si mesma e a descoberta foi emocionante. Ela também tinha olhos d’água, uma alma profunda, sua filha que descobriu. Assim, a história, mais uma vez, se repetiu: mulheres unidas contra as dificuldades da vida, que com força, coragem e com o auxílio da imaginação, seguiram em frente, e assim, conquistaram seu lugar no mundo. 

REFERÊNCIA:

EVARISTO, Conceição. Olhos D’Água [2014]. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2016.

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