Centenário de Paulo Brossard
Um homem público não se improvisa — eis uma verdade axiomática que deveria encimar os programas de todos os partidos.
Aos meus amigos:
Bruno Ceretta,
Marcus Boeira &
Rafael Vitola Brodbeck,
três gaúchos exemplares.
Um homem público não se improvisa — eis uma verdade axiomática que deveria encimar os programas de todos os partidos. Tivemos políticos de nomeada; alguns outros de dimensão verdadeiramente vocacionada para o universal. Não fazemos má figura diante de outros países, em que pese a irreverência sardônica dos derrotistas de todos os matizes, à direita e à esquerda. Um desses vocacionados — o conselheiro Rui Barbosa —, ao ver “todas as nações do mundo reunidas”, na grande aventura de Haia, em 1907, nos ensina: “aprendi a não me envergonhar da minha”.
Não falo dos políticos de hoje para não cair no constrangimento de nomear apenas três ou quatro que aí estão, apontando caminhos legítimos para o país, em meio a uma crise institucional generalizada. Quanto ao mais, no entanto, entre aqueles que já se aposentaram do fardo da política, há, pelo menos, três grandes figuras que ainda emprestam os seus talentos ao país: o escritor José Sarney, cuja presença de estadista, mesmo sem mandato político, vale quase por uma instância moderadora; o jurista Bernardo Cabral, atualmente presidente do Conselho de Notáveis da Confederação Nacional do Comércio; e o professor Michel Temer, ao qual a história ainda fará justiça, como o fez a Campos Salles. Não menciono o professor Vilmar Rocha porque, embora sem mandato eletivo, é, ainda hoje, com o brilho costumeiro, uma das lideranças incontestes do PSD.
Independentemente do atual quadro desolador, o ano de 2024 nos oferece a ocasião para tratar de um daqueles políticos de nomeada, que ajudaram a compor o grande painel em que se deram alguns dos mais importantes episódios da nossa recente história política. No último dia 24 de outubro, comemoramos o centenário de nascimento do jurisconsulto, publicista e orador gaúcho Paulo Brossard de Sousa Pinto, que tanto ilustrou o parlamento e o Judiciário.
Fez-se, o eminente homem público gaúcho, nas lides estudantis ao tempo da funesta ditadura do Estado Novo. A Vargas, o “pai dos pobres”, devemos-lhe, entretanto, não o surgimento, mas o despontar de uma gama admirável de lideranças e tendências políticas — os “bacharéis” da UDN, um Afonso Arinos de Melo Franco, um Milton Campos, um Prado Kelly, um Pedro Aleixo, um Adauto Lúcio Cardoso, um Bilac Pinto, passando pelo próprio Carlos Lacerda, que já abandonara a sinistra aventura do comunismo; o solidarismo cristão, consubstanciado no Partido Democrata Cristão, que teve na figura cimeira do Monsenhor Arruda Câmara o seu grande artíficie; a inteireza da doutrina integralista, reorganizada no Partido de Representação Popular, sob a reitoria intelectual desse grande escritor, publista e tribuno que foi Plínio Salgado, e que reuniu políticos da mais alta qualificação, como Guido Mondin, Abel Rafael Pinto, Raymundo Padilha, Aníbal Teixeira, entre outros; por fim, os velhos e os novos maragatos — Raul Pilla, Britto Velho, Coelho de Sousa, Mem de Sá, Paulo Brossard — abrigados no Partido Libertador, a única agremiação da época que defendia, em seu programa, o sistema parlamentar de governo.
Ao abrigo da legenda libertadora, Brossard haveria de se tornar um dos mestres consumados do parlamentarismo brasileiro, continuador dos exemplos de bravura cívica de um Gaspar da Silveira Martins, de um Assis Brasil, de um Raul Pilla, autor, este, de um excelente Catecismo parlamentarista (Porto Alegre: Globo, 1949; 2ª ed., Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1992), e de quem foi colega na Câmara Federal. De algum modo, levam adiante o velho espírito maragato e libertador o jornalista e escritor Percival Puggina, da Academia Rio-Grandense de Letras, e o deputado federal Marcel van Hattem, que não precisa descer ao lamaçal bolsonarista para fazer uma oposição consistente e respeitável ao presente estado de coisas do país.
Nem foi com outra postura que os democratas sinceros das décadas de 1960 e 1970 formaram uma oposição leal ao regime autoritário dos militares. Autoritário e inútil. Regime perdido na inoperância de Brasília, o anti-município por excelência. É que profeta se tornara o vice-presidente Pedro Aleixo, em 1968. Teimando em não assinar o dispositivo supostamente moralizador — o Ato Institucional n. 5, com que se varreu a ordem legal do país —, o grande homem público mineiro disse não duvidar das “mãos honradas do presidente Costa e Silva”, mas “do guarda da esquina”, para o qual se abriam as comportas da excepcionalidade legal. E assim feito.
Paulo Brossard, Bernardo Cabral, Tancredo Neves, Franco Montoro, Mário Covas, Teotônio Vilela — foram alguns dos nomes que encabeçaram a oposição verdadeiramente democrática e legalista ao regime militar. Repugnava-lhes o terrorismo de esquerda tanto quanto a suspensão das garantias constitucionais. Mesmo o dr. Ulysses, não há que negar, deu a sua contribuição — tão exagerada, de resto, por setores da esquerda.
E não há que negar, também, o papel fundamental dos estadistas que militaram no chamado partido do governo — primeiramente, a ARENA e, depois, o PDS — e que foram os mais importantes fiadores do processo de transição do regime autoritário para a plenitude democrática. Sem a decidida atuação de um José Sarney e de um Marco Maciel, de um Aureliano Chaves e de um Jorge Bornhausen, sem esquecer o papel do senador Petrônio Portella, não teríamos tido a transição pacífica e harmoniosa que tivemos, logrando o restabelecimento do regime democrático, sem o revanchismo tão habitualmente exigido pelas esquerdas, sem riscos de intervenção do estamento militar. Segundo a velha lição aristotélica, “a virtude reside no meio” — a justa medida, o equilíbrio, aquilo que é possível.
Assumindo, de início temporariamente, depois em caráter definitivo, a suprema magistratura da nação, pelos motivos que todos conhecemos, o presidente José Sarney — que bem podia ter sido um dos chefes da Liga Progressista do Império, fundada pelo conselheiro Saraiva — convida para comandar a pasta da Justiça o seu antigo adversário no Senado, o experiente maragato e libertador Paulo Brossard. Adversário, diga-se bem, à época, nada tinha que ver com os adversários de hoje, que se digladiam, ora velada, ora ostensivamente, aos olhos de todo o país. O senador oposicionista Paulo Brossard havia se tornado amigo fraterno do senador situacionista José Sarney, no convívio quase diário das refregas parlamentares. Os dois tomos da reunião de discursos de Sarney (O parlamento necessário. Brasília: Artenova, prefácio de Carlos Castello Branco, 1982) são um testemunho eloquente dos padrões de excelência da vida parlamentar de então.
Ainda está por se escrever o livro sobre os fundamentos genuinamente conservadores da transição do regime militar ao que se chamou à época de “Nova República”, que ainda nos rege com as suas qualidades e os seus defeitos. Os seus muitos defeitos. Aspirações tão legítimas, como a adoção do voto distrital misto e do sistema parlamentar de governo, não por acaso defendidos por Brossard e Sarney, soam como uma utopia no automatismo de Brasília, em meio à miséria do debate político. A biografia política do presidente Sarney, escrita pelo brasilianista americano Ronald M. Schneider (José Sarney — 60 anos de política. Trad. de Luis Reyes Gil, Campinas: Kraus, 2020), bem assim o livro de memórias do ministro Brossard (Brossard: 80 anos na história política do Brasil. Porto Alegre: Artes & Ofícios, coord. de Luiz Valls, 2004), são modelares no seguir o passo a passo da abertura e da transição.
Nesse sentido especificamente conservador da transição, a atuação de Paulo Brossard foi exemplar, naquilo que lhe cabia enquanto ministro de Estado — em momento algum, o afastamento do programa da Aliança Democrática; em momento algum, as facilidades da ação demagógica. Para a linha dura, Brossard era um “liberal de esquerda”; para os esquerdistas, um “conservador” empedernido, amigo do latifúndio e contra os “avanços sociais”. A bem da verdade, Brossard era o que sempre foi — um humanista com vocação indeclinável para a vida pública.
No último ano do governo Sarney, é Brossard indicado para o Supremo Tribunal Federal. Como ministro da Suprema Corte, Brossard, ainda hoje, aliás principalmente hoje, dá-nos outra lição de sumo valor: sua atuação como magistrado da mais alta corte de justiça do país em tudo contraria sua antiga trajetória parlamentar — o orador inflamado cede espaço ao juiz austero e discreto, guadião silencioso da Constituição, para o qual o clamor das ruas se perde no vazio e as disputas políticas não encontram nenhuma ressonância. Perdeu, o velho maragato e libertador, a fidelidade às boas ideias? Evidente que não. É que o figurino constitucional de ministro da Suprema Corte requer outra moldura. O magistrado, mais ainda o do STF, deve primar, antes de tudo, pelo despojamento e pela circunspecção. Não por mero acaso, um dos maiores ministros que já passaram pelo Pretório Excelso intitulou uma de suas obras de O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido (Rio de Janeiro: Forense, 1968). Seguramente os atuais ministros já devem ter lido a obra de Aliomar Baleeiro, especialista abalizado em direito das finanças e antigo parlamentar da UDN.
Em tempos como os nossos, com as patrulhas ideológicas a nos chamarem disto e daquilo, rememorar a figura saudosa do ministro Paulo Brossard, no ano do seu centenário, não deixa de ser um bom serviço à Causa maior do Brasil.
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