COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Reflexos da alma

Melhores Contos (1984), de Lygia Fagundes Telles, reúne 16 narrativas que mergulham na alma humana e trazem à tona os sentimentos inconfessáveis dos personagens.

Gabriela Lages Veloso

Ilustração: Bruna Lages Veloso

Lygia Fagundes Telles nasceu em 19 de abril de 1923 e faleceu em 3 de abril de 2022, em São Paulo. Foi contista, romancista, membro da Academia Brasileira de Letras e ganhadora de grandes prêmios como o Jabuti e Camões. Suas obras fazem parte da terceira fase do Modernismo — o Pós-modernismo — e são caracterizadas por uma prosa intimista, por vezes ligada ao realismo mágico ou fantástico, mas sem perder de vista o engajamento social e político de sua época.

Conhecida como a “dama da literatura brasileira”, a autora é dona de uma vasta e rica produção literária. Em 1984, com o selo da Global Editora, o crítico e escritor Eduardo Portella fez a seleção e prefácio dos Melhores Contos de Lygia Fagundes Telles. Esse livro reúne 16 contos que mergulham na alma humana e trazem à tona os sentimentos inconfessáveis dos personagens, que insistiam em: “Mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos” (Telles, 2015, p. 65).

Segundo Eduardo Portella, no prefácio do livro, a “narrativa de Lygia Fagundes Telles cresceu, sem necessitar se alongar. Cresceu por dentro. Embora tenha demonstrado indiscutível perícia no romance, é na história curta, no conto especificamente, que ela recorta o seu espaço muito especial” (Portella, 2015, p. 08). Ao longo da leitura desses Melhores Contos podemos notar que a figura feminina ocupa um lugar de destaque nas narrativas. Seja como protagonista, seja como personagem secundária, a mulher recebe novos contornos na contística de Lygia.

Assim, as personagens femininas deixam de figurar apenas como seres delicados, indefesos e apáticos, e ganham personalidades intensas e extremamente complexas. Um bom exemplo é a protagonista do conto “Apenas um saxofone”, que só podia “dizer palavrão em língua estrangeira [...] se possível, fazendo parte de um poema” (Telles, 2015, p. 19), ou seja, que, por ser mulher, só poderia dizer o que realmente pensava de modo implícito. Desse modo, ela dizia coisas cruéis, disfarçadas de pedidos de demonstração de amor, ao seu namorado. 

Ele, apaixonado, não percebia essa secreta língua estrangeira usada pela protagonista: cada palavra era uma ordem subentendida. Uma ordem cruel, humilhante e certeira. Outro tema abordado com maestria por Telles é a relação conflituosa entre membros de uma mesma família. A escritora traz à baila os segredos nunca revelados, as raivas contidas, as convivências forçadas no seio familiar. Retrata, a inveja entre irmãos; o narcisismo de uma filha que ignora a morte do próprio pai para ir a um baile de Carnaval; ciúmes; amores proibidos, traições e relacionamentos sustentados pelo frágil fio das aparências.

No conto “Eu era mudo e só”, por exemplo, o protagonista era casado com uma mulher controladora que manipulava todos os seus passos, amizades e até mesmo os seus sentimentos. O mais importante para sua esposa eram as aparências. Queria sempre parecer chique, culta, perfeita e feliz. Por isso, obrigava o marido a ser um “homem adaptável, ideal” que “entra numa sala azul fica azul, numa vermelha, vermelho. Um dia se olha no espelho, de que cor eu sou? Tarde demais para sair pela porta afora” (Telles, 2015, p. 40).

Sem dúvida, Melhores Contos é um livro que desafia tabus e valores preestabelecidos, ao debater sobre tudo que normalmente se evita/deixa de falar: suicídio, prostituição, relacionamentos tóxicos, a dor do envelhecimento e o medo da morte. Trata-se também de uma obra que apresenta fortes traços do realismo mágico ou fantástico, tal como é possível observar nos contos “Seminário dos ratos”, “A caçada”, “As formigas” e “A mão no ombro”. São narrativas que misturam questionamentos cotidianos sobre, respectivamente, a insensibilidade à dor do outro; a busca por identidade; a indignidade da pobreza e a solidão da morte, a elementos sobrenaturais.

São dignas de nota a criatividade e maestria com as quais a autora elaborou o conto “Missa do Galo” — uma releitura do texto de Machado de Assis que possui o mesmo título. Não se trata apenas de demonstrar uma forma diferente de narração ou uma nova perspectiva, a “dama da literatura brasileira” mergulha mais fundo na história e revela emoções, pensamentos e ações dos personagens que Machado apenas ironicamente sugeriu. O narrador de Lygia entra dentro do cenário (e também do tempo) do conto para observar tudo de perto, com a vantagem de não ser visto.

Portanto, ao lermos os Melhores Contos de Lygia Fagundes Telles estamos adentrando o território minado da intimidade da alma humana. É preciso estar atento, pisar com cuidado, para não explodir, de uma vez, alguma angústia disfarçada pelo cotidiano, pois é difícil “fugir de si mesmo” (Telles, 2015, p. 148). Mas, trilhando essa estrada com atenção chega-se ao autoconhecimento e, em consequência disso, não é possível sair o mesmo após encontrar-se com o seu verdadeiro eu. Assim como as narrativas de Telles, crescemos “por dentro”. 

 

REFERÊNCIA:

TELLES, Lygia Fagundes. Melhores Contos [Seleção de Eduardo Portella]. 13ª ed. São Paulo: Global, 2015.

Melhores Contos está disponível para venda no site da Global Editora: https://grupoeditorialglobal.com.br/catalogos/livro/?id=1506 

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