Esse início que começa com o fim
Todas as civilizações, de todos os tempos, todas as religiões, de todos os deuses e crenças, buscaram e buscam responder a tenacidade desse grande mistério.
A vida humana é marcada por suas circunstâncias. Isto por si, deveria nos fazer compreender a variedade de modos, comportamentos, padrões e estilos com os quais cada pessoa resolve seguir. O fato é que em algumas dessas circunstâncias, temos similaridades intransponíveis. Pouco importa os distanciamentos humanos e sociais padronizados pelas convenções sociais ou pelas terríveis desigualdades que ainda persistem entre nós, o certo é que temos uma data limite da existência aqui. Essa, que chamamos de passagem, viagem, descanso, ou simplesmente morte. Inimigo mais antigo do homem, a morte desafia a compreensão humana e perturba até os corações mais céticos. É bom estarmos aqui e isso ninguém contesta. Do lado de lá e, se tem o lado de lá, aí se recorre a fé, a espiritualidade ou ao acaso, surpresa reservada ao fim do caminho.
Todas as civilizações, de todos os tempos, todas as religiões, de todos os deuses e crenças, buscaram e buscam responder a tenacidade desse grande mistério. Não vou recorrer ao que foi dito ou refletido na filosofia, na teologia ou outras ciências sobre essa fase da vida humana, ou melhor, da vida criada. Homens e mulheres morrem, plantas e animais também. É uma condição imposta a tudo que foi criado. A questão fundamental talvez seja, como construímos nossa reposta, nossa reação para essa hora que cedo ou tarde visitará a casa da nossa existência ou a de alguém a quem amamos. É aqui que lembrei de uma história que ouvi faz algum tempo.
Mãe de três filhos, dona Rosália era daquelas mulheres fortes que marcava presença na condução da casa e da educação dos filhos, cujo pai havia morrido num acidente de trabalho quando estava grávida de João, seu caçula. Trabalho duro dentro e fora de casa, guardava tempo para auxiliar as crianças nas tarefas escolares e ensiná-las sobre a vida e os desafios do crescimento, da vida adulta e sua complexidade. Naquela casa se falava francamente de vida e de morte. Foi num desses diálogos, próximo a Páscoa, enquanto Rosália explicava sobre a morte e ressurreição de Jesus, que João disparou a pergunta: “ - Mãe, não consigo entender o que é ressuscitar. Se ele morreu e voltou a viver, porque não ficou aqui pra sempre?” - com paciência, mas sem saber bem onde começar a explicação, dona Rosália engendrou uma resposta: - João, ele viveu aqui durante alguns anos, foi condenado e morto e depois ressuscitou. Os amigos dele, chamados discípulos o viram vivo. Outras pessoas também. Mas depois de uns dias ele voltou para o Céu. E mesmo assim eles sentiam que ele estava com eles. Nunca se sentiam só.” - sabe João, eu acho que é como quando você toma banho e deixa a toalha molhada em cima da cama. Nem preciso perguntar, já sei que é você, é a sua marca. Você estando ou não em casa, sei que foi você que deixou, e mesmo chateada, sinto tua presença, pelo sinal da toalha. Eles também sentiam isso. Ele ressuscitado, presente em tudo o que eles faziam, como ele fazia, nos sinais que ele deixou. Acho que seja por aí, concluiu Rosália que era ouvida com atenção pelos três filhos na mesa do café.
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Aquela resposta de Rosália, pode nos inspirar. Nem é tão difícil acreditar que a vida não termina aqui. Difícil mesmo é assimilar a finitude como processo natural e necessário. Se o corpo, esse aconchego do sopro da vida perece, algo que é infinitamente maior, permanece. Como aquela toalha molhada na cama, marcamos o mundo e as pessoas com nossos sinais. Símbolos do que somos, esses sinais nos acompanham agora e depois, eternizando nossa passagem, registrando nosso trajeto, mantendo vivo em quem fica o “presente” que não cessa. O hoje que não conhece amanhã. É nessa abertura que a vida se estende, se revela e se reinventa.
No mais, é um pouco a sentença de Suassuna, uma conclusão que paira entre a dor, a certeza, o medo e a sátira, pois sim, a vida aqui ou em algum lugar, onde quer que ela possa continuar é tecida entre essas vicissitudes, até nos deparamos “ com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.
Ficam as toalhas molhadas na cama e o que elas significam.
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