BRASÍLIA - Numa análise mais apressada da redemocratização, pode-se imaginar que, em 15 de março de 1985, os generais não tiveram alternativa a não ser devolver o governo do país aos civis, após 21 anos de ditadura militar. Não foi bem assim.
Nesse dia, o presidente eleito, Tancredo Neves, deveria ter recebido a faixa presidencial do general João Baptista Figueiredo, naquele que prometia ser um dos marcos da redemocratização. Tancredo, como se sabe, não assumiu o poder, mas a democracia, sim, voltou.
A redemocratização se tornou realidade porque o vice-presidente eleito, José Sarney, tomou posse no lugar de Tancredo e ocupou interinamente a Presidência da República, à espera da recuperação do titular. O Brasil comemora agora o 40º aniversário desse episódio.
Aquele 15 de março, no entanto, poderia ter tido outro desfecho. Diante das surpreendentes notícias de última hora a respeito da saúde de Tancredo, que foi operado de emergência e não poderia ser empossado no dia marcado, houve militares que conspiraram e se movimentaram para impedir que Sarney assumisse o poder.
Se o golpe de Estado tivesse obtido êxito, esses militares teriam retardado a redemocratização e dado à ditadura uma sobrevida de não se sabe quanto tempo.
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Saúde de Tancredo
O historiador Antonio Barbosa, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e consultor legislativo aposentado do Senado, explica:
— Fazia algum tempo que Tancredo sabia que a sua saúde não ia bem, mas ele decidiu que só se trataria e seria operado depois da posse, quando a redemocratização já estivesse garantida. Tancredo tinha consciência de que golpistas nas Forças Armadas procuravam qualquer pretexto para não devolver o poder aos civis.
O problema é que a saúde de Tancredo não pôde esperar a posse. Na noite de 14 de março, sem forças para resistir às dores no intestino, ele foi levado para o Hospital de Base de Brasília, onde foi operado às pressas.
Os golpistas logo se agitaram. Duas razões principais moveram esse grupo. A primeira foi a ausência de uma lei que autorizasse o vice-presidente eleito a tomar posse sem o titular. Teoricamente, Sarney só poderia ocupar a Presidência da República de forma interina se Tancredo tivesse sido antes empossado.
Entre políticos do PMDB, houve inclusive quem defendesse que o empossado fosse o presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, por se tratar do segundo nome na linha de sucessão presidencial.
A segunda razão que moveu os golpistas foi o próprio Sarney, que se transformara num desafeto dos militares em 1984, quando mudou de lado, deixando o PDS (partido de sustentação da ditadura, sucessor da Arena) e se filiando ao PMDB (principal partido de oposição) com o objetivo de compor a chapa presidencial encabeçada por Tancredo. Sarney havia sido o primeiro presidente nacional do PDS.
Pedido ao Exército
No livro Tancredo Neves: a noite do destino (Editora Civilização Brasileira), o jornalista José Augusto Ribeiro, que foi assessor de imprensa da Tancredo na época do Colégio Eleitoral, conta que o presidente Figueiredo, ao saber da hospitalização do presidente eleito, pediu ao seu ministro do Exército, general Walter Pires, que impedisse a posse do vice.
O levante dos quartéis só não se consumou porque, àquela altura, Pires não tinha mais poder. A exoneração de todos os ministros do último governo da ditadura já estava publicada no Diário Oficial da União.
Ao mesmo tempo, o ministro do Exército escolhido por Tancredo, Leônidas Pires Gonçalves, garantiu que, diante de qualquer tentativa de golpe de Estado, agiria prontamente na repressão dos rebeldes e na garantia da redemocratização.
Um dos sinais mais claros de que Figueiredo não aceitava Sarney foi a bizarra reação do general no dia da posse. Ele simplesmente se recusou a transmitir o poder para o vice de Tancredo e abandonou o Palácio do Planalto pelos fundos antes da chegada do presidente interino.
Dos males, o menor: em vez de simplesmente recusar-se a transmitir o poder, Figueiredo apenas cometeu a descortesia de não entregar a faixa presidencial.
Quanto ao impasse legal, decorrente da falta de uma lei prevendo a posse isolada do vice-presidente eleito, recorreu-se a uma solução política. Numa reunião na madrugada do dia 15, o deputado Ulysses Guimarães redigiu com os demais líderes políticos do Congresso Nacional um documento estabelecendo que, para que a Mesa do Senado desse posse a Sarney, bastaria um laudo médico atestando que Tancredo não tinha condições físicas de estar no Parlamento naquele momento.
Vários historiadores entendem que, recusando-se a ser operado antes da posse, Tancredo fez um sacrifício pessoal e colocou a democracia e o Brasil acima de sua própria vida. Num editorial de primeira página publicado na época, o jornal Tribuna da Imprensa descreveu a atitude como “heroísmo cívico”.
Transferido para São Paulo, onde foi novamente operado, Tancredo Neves morreria pouco tempo depois, no feriado de 21 de abril, devido à falência de múltiplos órgãos. Houve cortejos fúnebres em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e São João del Rei (MG), sua cidade natal, onde foi enterrado.
A posse de Sarney, em 1985, coroou o longo período de transição política, iniciado em 1974, quando o general Ernesto Geisel tomou posse e pôs em ação um plano de abertura “lenta, gradual e segura” — segura para os militares.
Como parte dessa abertura, foi aprovada em 1979 a Lei da Anistia, que garantiu que os agentes da repressão não seriam punidos por seus crimes, e foi rejeitada em 1984 a eleição direta para presidente da República, de modo que os militares pudessem ter controle sobre a eleição do primeiro presidente civil, escolhido de forma indireta pelo Colégio Eleitoral (que era composto por senadores, deputados federais e representantes das assembleias legislativas).
De acordo com o historiador Antonio Barbosa, Tancredo foi o candidato oposicionista consentido pelos militares em razão de seu temperamento político:
— Ele era um velho liberal e politicamente era ponderado. Nunca foi do confronto, embora fosse firme em suas ideias. Em vez construir muros, preferia construir pontes. Tancredo surgiu nos momentos finais da transição democrática como o candidato que conseguia representar o sentimento oposicionista e, ao mesmo tempo, ser aceito pelos militares.
Ele conclui:
— Sarney entrou para a história por ter cumprido o papel, originalmente pertencente a Tancredo, de garantir a passagem da ditadura para a democracia, sem rupturas, de forma pacífica, sem derramamento de sangue, por meio da negociação política. Sarney reforçou esse papel de fiador da democracia quando convocou os constituintes para elaborar a Constituição de 1988, a que redemocratizou o Brasil na letra da lei.
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