D. Pedro I
O ex-presidente José Sarney relembra a passagem histórica quando os ossos de D. Pedro I vieram de Lisboa e percorreram o Brasil para marcar os 150 anos da Independência do país.
Nos 150 anos da Independência, em 1972, o Coronel Otávio Costa, chefe da comunicação do Médici, teve a ideia de criar uma diplomacia dos ossos para reavivar o nosso sentimento patriótico: trouxe de Portugal os ossos de D. Pedro I, que percorreram o Brasil inteiro e, depois, tiveram o devido repouso no Panteão do Ipiranga, em São Paulo.
O caixão não podia ser aberto, fazia parte do acordo Portugal-Brasil, porque havia sempre o perigo de ossos trocados. E os portugueses bem sabem disso: a urna que continha os ossos de Santo Antônio de Lisboa, venerada por séculos na igreja do mesmo nome, quando foi aberta, para grande surpresa, tinha apenas ossos de um pobre carneirinho!
No Maranhão, a urna fúnebre ficou solitária no Palácio dos Leões.
O jornalista Erasmo Dias, tradicional boêmio de São Luís e grande escritor, estava, como em todas as noites, na zona do meretrício, quando se lembrou dos ossos de D. Pedro. Era alta madrugada. Chamou os bêbados retardatários das pensões de mulheres:
— Dom Pedro I está no Palácio dos Leões. Convido vocês a irem comigo visitar os ossos do Imperador.
Organizou um séquito respeitoso que, cambaleante e silenciosamente, subia e descia as ladeiras desertas da velha cidade para prestar homenagem ao proclamador da Independência.
Chegaram ao Palácio dos Leões, onde estava o caixão, para o velório patriótico.
Na sala de lustres portugueses, luzes baças, o caixão dourado.
Os bêbados se aproximaram. Erasmo foi o intérprete deles. Fechou o punho, bateu forte na tampa do caixão do Imperador e falou com a voz embargada e roufenha, pela cerveja e pela noite:
— Guabiru! Guabiru! Papaste as melhores damas do Império!
Feita a homenagem, retiraram-se em respeitoso silêncio.
D. Pedro adorava cavalos e formara o hábito de elogiá-los aos donos, que acabavam por presenteá-los ao Imperador. Uma feita admirou um cavalo de um homem de sua guarda de honra, Domingos Marcondes de Andrade. Elogio, elogio, e nada. D. Pedro comentou o apreço exagerado do dono pelo animal. O guarda lhe disse que corria que ele costumava chamar os cavalos pelo nome de quem os presenteara e que nunca nenhum Marcondes fora montado. Assim o cavalo passou ao Imperador com a promessa de nunca o chamar com o nome do antigo dono.
Conta-se que D. Pedro I, após a abdicação, quando partia para a reconquista da coroa portuguesa, viu aquela fileira de barões nomeados por ele, deputados e senadores, entre a solidariedade e o medo do futuro.
O Marquês de Paranaguá apresentou-se na nau inglesa Warspite. D. Pedro disse-lhe que dele não podia se encarregar, pois já trazia muita gente às costas.
— Espero que não irá a Portugal antes de minha filha ficar estabelecida no trono; proíbo-lhe.
— Mas, senhor, que quer que eu faça? Não tenho fortuna.
— Faça o que quiser, não é da minha conta: por que não roubou como Barbacena? Estaria bem, agora.
Barbacena negociara o casamento de D. Pedro com D. Ana Amélia, e o Imperador o considerava inescrupuloso.
Era o mesmo Dom Pedro que dissera ao Marquês de Quixeramobim sobre Gonçalves Ledo, um dos grandes heróis da Independência e homem de grande prestígio, inimigo dos Andrada, quando aquele defendia do crime de responsabilidade seu Ministro da Guerra, General Oliveira Álvares:
— Forte tratante! É a terceira vez que o compro e em todas me tem servido bem.
Desde 1826 abdicara da Coroa portuguesa em nome da filha, Maria II. D. Miguel, seu irmão, dera um golpe de Estado e formara um regime absolutista. Depois de preparar, com parcos recursos, o resgate de Portugal para a filha e para o liberalismo, D. Pedro, usando o título de Duque de Bragança, finalmente desembarca perto do Porto, em julho de 1832. Um ano depois de tremendo esforço, em que fizera de tudo, até montar canhões, conquista Lisboa e Porto; em maio de 1834 assina a Paz. Mas, nas comemorações, leva o lenço à boca num acesso de tosse e o retira vermelho de sangue: está tuberculoso. Continua, com imensa dificuldade, trabalhando. Ocupa, no Palácio de Queluz, o Quarto dom Quixote — decorado com cenas do livro de Cervantes —, onde nascera. E ali morre, quatro meses depois, vitorioso contra os moinhos de vento da História.
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