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Coluna do Sarney
José Sarney é ex-presidente da República.
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Eleição sem ideias

Passamos mais uma eleição, a vigésima primeira desde a Constituição de 1988: dez gerais, dez municipais, dez presidenciais.

José Sarney

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Passamos mais uma eleição, a vigésima primeira desde a Constituição de 1988: dez gerais, dez municipais, dez presidenciais. A conta parece errada, mas a eleição presidencial de 1989 foi separada da eleição para as duas casas do Congresso, realizada em 1990. A partir de então os anos pares alternam as eleições gerais com as municipais. 

A eleição de 1989 foi a última das quatro que presidi em meus cinco anos de governo. Logo em 1985 fizemos eleições para prefeitos das capitais, de áreas de segurança nacional e de estâncias hidrominerais!?! — todas tinham, por motivos estapafúrdios, prefeitos nomeados. Fizeram prefeitos sete partidos, o PMDB, o PFL, o PDS, o PTB, o PDT, o PSB e o PT. Em 1986 a eleição trouxe os constituintes — eu enviara mensagem em 28 de junho de 1985, com 100 dias de governo, convocando uma assembleia nacional constituinte, cumprindo assim o compromisso assumido por Tancredo Neves. Foram eleitos parlamentares de 12 partidos. 

A expansão dos partidos políticos era um fenômeno que vinha de longe. O partido político é uma ideia do século XIX que sobreviveu e precisa sobreviver. Mas é uma ideia em crise. O fenômeno é universal. Nos Estados Unidos, o Partido Republicano, fundado para formar uma frente ampla contra o ataque do extremismo escravocrata que assediava o poder, o “great old party”, tornou-se o instrumento de alucinações, a de Trump e a da extrema-direita. Na França o PS sobrevive aos tropeços, e o gaullismo torna-se instrumento do fantasma extremista cuja ameaça fez De Gaulle criar a 5ª República. Na Alemanha o nazismo renasce de cinzas que se pensava enterradas sob 40 milhões de mortos.

Nós tivemos dois partidos no Império, o Conservador-Regressista-Saquarema de Bernardo de Vasconcelos e o Liberal-Reformador-Luzia de Nabuco de Araújo — desculpem a simplificação grosseira desses anos tão ricos da política. O Partido Republicano surgiu como único, logo dividindo-se em facções estaduais, que repartiam o poder. Campos Salles, com um realismo antidemocrático, resolveu fazer eleições de faz de conta. Com o golpe de estado de 1930, Getúlio cooptou seu adversário histórico, Assis Brasil, para fazer uma lei eleitoral. Feita esta, em 1932, trancou-a na gaveta. 

Em 1946 apareceram os partidos nacionais, inicialmente marcados pelo getulismo: a coalizão contrária, a UDN, e os dois partidos por ele construídos, o PTB e o PSD. O Partido Comunista foi logo proibido. João Mangabeira separou o Socialista da UDN. O Republicano de Bernardes e o Libertador de Raul Pilla completavam o quadro das ideias; o PSP, de Ademar de Barros, o das conveniências. Tudo acabou em 1965.

Os partidos formados artificialmente, MDB e Arena, funcionaram com as limitações que se conhece. Geisel resolveu mudar para evitar a vitória do MDB, abrindo a formação partidária. Tancredo Neves e Magalhães Pinto fizeram o PP. Eu tentei construir o PDS como um partido moderno, baseado em democracia interna, mas fui impedido — e minha ida ao encontro de Tancredo no PMDB contribuiu para a Aliança Democrática viabilizar a transição e fazer a nova Constituição.

Mas voltamos ao velho modelo dispersivo que se origina no voto proporcional uninominal de 1932. Com essa regra velha e algumas novas regras de concepção mal-intencionada, os partidos voltaram a ter donos e não precisam ter votos. Temos assim essa cacofonia de 29 partidos fisiológicos. São raras as ideias; vagos, quando existem, os programas, e não se pratica a democracia partidária. Regras mínimas de controle são recusadas pelo próprio Parlamento, formado cada vez mais por políticos sem experiência e sem visão do futuro.

As atuais eleições municipais — que acabaram em muitos lugares, mas com uma segunda rodada daqui a alguns dias — mostraram a situação desastrosa. Não se trata apenas de problema no Congresso Nacional e nas assembleias, onde a corrosão é escandalosa. Os municípios são administrados por prefeitos e vereadores que representam… nada. São eleitos, na melhor das hipóteses, por promessas demagógicas e pontuais, mais frequentemente pela calúnia, pela difamação, pela mentira ou mesmo pela violência física, sempre misturadas com uma enxurrada de dinheiro que afasta qualquer veleidade de legitimidade democrática. Felizmente, aqui e ali, há casos que escapam à regra e infelizmente a confirmam. 

Com o sistema atual o eleitor não decide, pois não há uma escolha democrática: ele vota, mas em pessoas — aliás, em números — que não representam ideias ou ideais. E a democracia se faz com estas, com programas, com projetos, com visões de mundo. É preciso colocar, na pauta das reformas, a eleitoral.

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