Nunca o planeta Terra teve tantos habitantes vivendo ao mesmo tempo sobre o mesmo chão. Somos mais de 7 bilhões de pessoas, dos quais 3 bilhões vivem em áreas secas, desérticas, a procura de um lugar mais ameno para sobreviver, por isso chamados de “migrantes climáticos”; e estima-se que até 2050 cheguemos a nove bilhões de viventes, o que corresponde a um aumento de aproximadamente dezesseis vezes da população mundial desde a revolução industrial, no século XVIII.
Na contramão desse crescimento exponencial, estudos da ONU mostram que cerca de 20% das espécies animais (peixes, mamíferos, anfíbios, plantas, aves, répteis) estão a caminho da extinção. Apesar da fome que mata aos milhões mundo a fora, mais de um bilhão de toneladas são desperdiçadas no mundo todo ano, o que equivale a um terço de tudo o que é produzido em escala global, gerando 3 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa, lançados na atmosfera e 250km3 de água que vão para o ralo do desperdício. Não à toa, levantamentos científicos advertem que a presença humana na Terra e a forma com que interagimos com a natureza estão a demandar hoje o equivalente a 1,5 planeta de recursos naturais para dar conta do ritmo de consumo que geramos.
Mas, ao contrário do que possa parecer, este texto não se propõe a falar sobre mudança climática, transição energética, aquecimento global, necessidade de descarbonização da economia, pegada ecológica ou outros assuntos da agenda verde, mas de outra urgência que igualmente tem deixado um rastro de destruição por onde passa: a forma como temos nos relacionados entre semelhantes. Se por um lado é certo que fomos criados à imagem e semelhança do autor do universo, o que atrairia uma ideia de união, proximidade, amor ao próximo, compartilhamento de essências e sentimentos, por outro é verdade inconteste que nossas diferenças e distanciamentos nunca pareceram tão evidentes como na era em que vivemos. As interações de hoje em dia estão passando por profundos paradoxos existenciais, pelos mais diversos fatores que vão desde a falta de segurança pública a dificultar o convívio social comum nos moldes dos tempos de nossos avós em locais coletivos como praças, brincadeiras de rua, clubes etc, seja pela contínua escassez de tempo que nunca é suficiente a suprir, nas aceleradas 24 horas do dia, todas as inúmeras atribuições que temos em casa, no trabalho, com a família, com os estudos, com a saúde, filhos e tantas outras frentes. Afinal, nunca estivemos tão ocupados e ao mesmo tempo feito tantos amigos, ainda que muitos deles sequer reconheçamos ao cruzar na rua, ou tenhamos tido a oportunidade de tomar um café pessoalmente ou de lembrar o nome, ou de saber de onde conhecemos ou o que faz, o que pensa, pra qual time torce, bastando que o ciclo de amizade tenha se iniciado a partir de um “clique” e que, ato contínuo, passe a ostentar o título - para muitos, quase honorífico - de “seguidor”. As redes sociais e as regras de engajamento tão levadas a sério, não me deixam estar errado. Infelizmente. Dados da 35a Edição da Pesquisa do Uso da TI, conduzida pela FGV, divulgados em maio deste ano, mostram que no Brasil existe um total de 258 milhões de aparelhos celulares em uso, o que equivale a 1,2 smartphone por habitante. Se expandirmos o critério para dispositivos portáteis - incluindo smartphones, notebooks e tablets - este número sobe para espantosos 384 milhões de equipamentos em uso. Em contraste, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que há 203 milhões de pessoas no país.
E o que isso tem a ver com gente? Quem em sã consciência ousaria negar os benefícios que a tecnologia à palma da mão, tão bem engendradas para nos aprisionar, digo, entreter nossa atenção, podem nos trazer? A questão não é quanto aos benefícios, estes muitas vezes inegáveis, como a facilidade de realizar pesquisas de forma instantânea, o que antes passaríamos horas buscando em bibliotecas, acesso a livros digitais, filmes, plataformas de música, aplicativos de banco, evitando filas homéricas e perdas de tempo insanas, comunicação “a zap”, enfim são muitos, não há dúvida. Mas igualmente o são seus efeitos colaterais! A lista vai desde problemas na coluna, vista forçada, insônia, ansiedade, perda de foco, desperdício de tempo, improdutividade, procrastinação, cansaço físico e mental, vícios de toda ordem e, o que está no cerne de todos eles, e que impeliu à elaboração deste ensaio: a perda do valioso e real convívio entre as pessoas. Os prejuízos desta encruzilhada em que nos metemos em menos de uma década, são imensuráveis e estão a comprometer gerações - presentes e futuras, e prometem ser implacáveis se nada fizermos logo. Como o número de aparelhos já superou o de brasileiros, o desafio que temos pela frente em nossos núcleos sociais está em combatermos e determos a progressiva mecanização destas interações e buscar resgatar a conversa genuína, o olho no olho, a troca de percepções, a escuta ativa, a atenção real a quem está ao nosso redor, o exercício enfático da empatia e da simpatia pelo outro. Peter Drucker diz que plano de longo prazo não lida com decisões futuras, mas com o futuro de decisões presentes. É preciso agir aqui e agora! Derrotar este marasmo existencial requer mais que uma simples estratégia, exige determinação, autoconhecimento, força e fé. Crises graves têm se instalado em contextos familiares quanto ao uso descontrolado de celular, sobretudo diante de filhos adolescentes que acham (e que são levados a crer) que podem tudo e que o direito à intimidade é absoluto, colocando em xeque a autoridade e o dever de instruir e cuidar dos pais e mães, enquanto a paz e a harmonia são sequestradas dentro de nossas casas por um intruso que foi convidado a entrar pela porta da frente e que temos permitido passivamente, e sem resistência, ditar nossas regras de convivência às quais temos nos curvado, domados por doses apoteóticas de dopamina que “likes” e “curtidas” têm gerado em horas e horas de interação estéril nas redes sociais. Mesas de jantar vazias, salas de estar desertas, quintais e varandas com jogos de bola ou de gude abandonados, brincadeiras de antigamente esquecidas, sorrisos compartilhados cada vez mais escassos, muros sentimentais erguidos entre irmãos, pais e filhos, fronteiras inóspitas dividem quartos de uma mesma casa, pandemias de transtornos psiquiátricos, índices alarmantes de suicídio, indigência emocional… Onde tudo isso vai nos levar?
Está passando da hora de pendurarmos o celular, dar a ele o seu devido lugar de controlado (e não de controlador) e pararmos para refletir que precisamos levantar do banco de passageiro, assumir a condução do trem da vida e reverter esta sociedade de isolados em que nos tornamos e resgatarmos o que fazemos de melhor e para o que fomos chamados enquanto por aqui estivermos: sermos gente real, e não virtual, de carne, osso, alma e espírito.
*Rômulo Nelson é advogado
romulonelson@yahoo.com.br
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