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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Samba de elevador

Nem a poesia pode remendar o estrago do preconceito, nem aliviar a ferida cruel do racismo.

Kécio Rabelo

A correria da semana nos impõe metas. Pouco ou nada nos chama a atenção com tantas coisas a serem feitas. Mas o cotidiano é também escola de vida. Assim, atrasado entre compromissos, enquanto olhava as mensagens do WhatsApp que chegavam velozes após dez ou quinze minutos sem rede, entrei apressado no elevador. Ele me roubou novamente o sinal e me obrigou a ver uma cena em que o racismo foi o ator principal. Daquelas que muitos de nós já testemunhamos algum dia, de algum modo.

O “elevador é quase um templo”. Porta de aço, espelho que devolve olhares, silêncios e hierarquias. Não é apenas máquina: é um confessionário de desigualdades. Uns entram com naturalidade; outros são convidados a esperar, a descer pela escada de serviço, a lembrar-se de que o social tem dono. O aço range e denuncia, mais do que transporta: revela.

Veio à mente um conhecido samba de Jorge Aragão, aqui convocado como denúncia e memória: “Somos herança da memória, temos a cor da noite, filhos de todo açoite.” É como se cada palavra fosse martelada no corpo da cidade, lembrando que as marcas do passado ainda se prolongam no presente. A indiferença veste paletó, aperta botões, olha o relógio. Mas há quem carregue nos ombros dores comuns, invisíveis, que não cabem em estatísticas: o olhar atravessado, a exclusão sutil, a espera forçada.

Diferenças — elas existem, foram cultivadas com violência, justificadas em livros e pregadas em púlpitos. Mas não são naturais. Foram erguidas como muros, elevadores sociais, portas separadas. A dor é coletiva, mas também íntima: está no coração que se aperta diante de um “não é por aqui”, no corpo que se curva para caber num espaço que lhe negam.

E, ainda assim, há resistência. Resistência que não se mede em músculos ou gritos, mas em passos firmes, em memórias preservadas, em vozes que se erguem no samba, no tambor, no canto das ruas. Resistência que nos lembra: “quem cede a vez não quer vitória.”

A crônica da vida brasileira é feita de exclusões, mas também de insistência. O açoite não apagou o riso. A humilhação não calou o canto. A noite, longe de ser escuridão, tornou-se cor — cor de identidade, de comunidade, de sobrevivência. Talvez seja isso que incomode tanto: a capacidade de existir apesar de tudo. De subir ao elevador social, mesmo quando querem empurrar para o de serviço. De afirmar: não nos ajuda, só nos faz sofrer, nem resgata nossa identidade.

O elevador, esse templo de desigualdade, pode até dividir. Mas há uma outra força que nos une, invisível aos que escolhem a indiferença: a memória que pulsa, a dor que se transforma em canto e a certeza de que, apesar de tudo, seguimos.

Nem a poesia pode remendar o estrago do preconceito, nem aliviar a ferida cruel do racismo. Que ela, ao menos, sirva para nos livrar dessa perversão e redescobrir que, na roda de samba da vida, somos apenas um entre outros. E, apenas isso.


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