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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

A Ilha de Caras

O tempo desorganiza percepções — e esse é um valor.

Kécio Rabelo

Na infância, na casa da minha mãe havia as revistas Caras. As páginas coloridas mostravam celebridades sorridentes em um paraíso chamado “Ilha de Caras”. Eram festas impecáveis, corpos perfeitos, dentes brancos e felicidades sem rachaduras. Eu acreditava que aquilo era apenas cenário de revista. Anos depois, descobri que a ilha existe mesmo, em Angra dos Reis. Mas a constatação não retirou o artifício: era real, mas o espetáculo sempre foi montado.

O tempo desorganiza percepções — e esse é um valor. A Ilha de Caras não ficou restrita às celebridades. Ela se multiplicou e se instalou no bolso de cada um de nós. Está no feed do Instagram, no status do WhatsApp, nas dancinhas do TikTok. Cada um monta o seu cenário perfeito; o “instagramável” tornou-se sinônimo de existir. A velocidade e fluidez da comunicação são avanços que precisamos reconhecer. Mas, em meio a essa maré, navegamos num mar revolto, sem sinalizações, sem freios. É sempre sobre liberdade — mas, paradoxalmente, é uma liberdade que convive, e até sobrevive, de imposições.

Quantas vezes você já sentiu que precisava sorrir para uma foto, mesmo sem vontade? Quantas vezes pensou: “se não postar, ninguém vai saber”?

Vivemos a sociedade líquida de Bauman: nada é estável, tudo escorre. Relacionamentos, identidades, amizades — tudo parece depender de curtidas e reações. A pergunta que inquieta é inevitável: será que estamos vivendo ou apenas posando?

Buscamos o corpo perfeito, a viagem perfeita, a vida perfeita — e, em troca, acumulamos mentes cansadas, ansiosas e cheias de comparações. Quantos de nós medimos nosso valor pelo número de likes? Quantos se sentem invisíveis quando o celular não vibra? Quantas vezes já olhamos para a própria vida e pensamos que não é tão bonita quanto a do vizinho, do colega, do influencer? Quantos de nós perseguimos a própria infelicidade, acreditando que corremos atrás da alegria?

Mas caberia aqui explorar as dimensões filosóficas e humanas desse fenômeno comportamental. Não é o caso.

Ainda assim, é preciso lembrar: a identidade pessoal, as marcas singulares de cada um, são um valor a ser preservado. Não fomos feitos em série, nem chamados a exibir os mesmos rostos e sorrisos. A diversidade é riqueza, mas a padronização — quando erguida como regra — esconde uma alienação profunda, que às vezes pode ser mortal. A busca interminável pela perfeição idealizada se transforma em um escombro de frustrações, que, a longo prazo, enterra qualquer força de existir. Não tenho que fazer tudo. Não tenho que ser tudo. Não tenho que sorrir sempre. Não tenho que ter. Tenho apenas que ser — e descobrir, todos os dias, o valor de existir. Redescobrir o calor de um abraço como antídoto para a frieza das telas.

O paradoxo nos corrói: sorrimos para fora e sangramos por dentro. Exibimos músculos definidos, mas escondemos corações desorganizados. Temos feeds lotados de amigos e timelines vazias de afeto real. O que estamos construindo, afinal, quando a existência se mede por reações digitais?

A Ilha de Caras continua de pé, mas agora está dentro de cada rede social, habitada por nós. O desafio? Não naufragar nesse mar de aparências.

E talvez a pergunta mais importante seja: vale a pena viver para os aplausos ou é hora de reaprender a viver para nós mesmos?

Saudade daquela revista e do tempo em que ela circulava. Nunca a levei no bolso — e, talvez por isso, eu tinha tempo de ter mais tempo.


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