Para que serve o Crea?
CREA está presente na indústria aeronáutica, automotiva, de equipamentos eletrônicos, de produtos químicos, na mineração, nas telecomunicações, entre tantos outros setores estratégicos para o desenvolvimento nacional
Quem nunca ouviu a frase: “ah, o CREA não serve para nada”? Essa afirmação, repetida de forma leviana, revela não apenas um desconhecimento profundo sobre a natureza e a função dos conselhos de fiscalização profissional, como também alimenta o tipo de pensamento que dá origem às chamadas “jabuticabas brasileiras”, expressão popular usada para definir situações estranhas ou típicas do Brasil que não se encontram em outros lugares. Mas, no caso do CREA (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia), esse raciocínio não procede, porque a autorregulamentação da engenharia não é invenção brasileira: existe em diversos países do mundo, sob diferentes modelos.
O modelo de autorregulamentação pode ser basicamente dividido em dois grandes sistemas: o inglês e o continental europeu. No modelo inglês, a regulação é exercida por associações privadas de adesão voluntária, em que os próprios profissionais se organizam para criar normas e supervisionar a prática, sem caráter jurídico público. Já no modelo continental europeu, seguido por países como Portugal e Brasil, a autorregulação é estatal, realizada por entidades públicas de natureza autárquica, criadas por lei, com poder normativo e de polícia. Ou seja, nesses casos, os conselhos e ordens profissionais não são clubes privados, mas órgãos de direito público com autoridade para conceder registros, aplicar sanções e proteger a sociedade.
No Brasil, o CREA é uma autarquia federal, integrante do Sistema Confea/Crea, criado em 11 de dezembro de 1933 pelo Decreto nº 23.569, com autonomia administrativa e financeira. Sua função é fiscalizar o exercício da engenharia, da agronomia, da geologia, da geografia e da meteorologia, garantindo que apenas profissionais habilitados e éticos possam exercer atividades que impactam diretamente a segurança da coletividade. E sua amplitude vai muito além da construção civil: o CREA está presente na indústria aeronáutica, automotiva, de equipamentos eletrônicos, de produtos químicos, na mineração, nas telecomunicações, entre tantos outros setores estratégicos para o desenvolvimento nacional. Em resumo, onde há engenharia e exercício profissional, o CREA está lá para fiscalizar. Trata-se, portanto, de uma atividade típica de Estado, delegada por lei federal, que se concretiza no poder de polícia: conceder registros, habilitar empresas, fiscalizar obras e serviços, aplicar sanções disciplinares e coibir o exercício ilegal da profissão.
Esse poder de polícia, contudo, não se confunde com poder de embargo. O CREA não embarga obras ou serviços, sua atuação é voltada ao campo profissional e ao controle do exercício legal da atividade. No caso das empresas, a sanção possível é a multa, aplicada quando atuam sem atender às exigências legais e regulamentares. Já os profissionais estão sujeitos a um espectro mais amplo de penalidades previstas na Lei nº 5.194/1966, que variam conforme a gravidade da falta: podem receber advertência reservada, censura pública, multa, suspensão temporária do exercício profissional ou até mesmo o cancelamento definitivo do registro. Isso deixa claro que o CREA fiscaliza e pune no âmbito profissional, enquanto o embargo de obras compete a outras autoridades administrativas, como prefeituras, órgãos ambientais ou o Poder Judiciário.
Muitos dos que afirmam que o CREA “não serve para nada” o fazem por confundirem sua missão com a das entidades de classe ou dos sindicatos. A confusão é comum, mas equivocada. Como já destacou o Tribunal de Contas da União em seu Acórdão nº 1925/2019-Plenário, os conselhos de fiscalização não existem para defender interesses corporativos dos profissionais, mas sim para proteger a sociedade. Diferente dos sindicatos, que têm como objetivo negociar condições de trabalho, e das associações de classe, que representam categorias profissionais e promovem eventos ou benefícios aos seus associados, os conselhos têm por missão regulamentar e fiscalizar, punindo desvios e assegurando padrões técnicos e éticos.
Esse modelo também está presente em diversos países. No Equador, existe o Colégio de Engenheiros, em Portugal, a Ordem dos Engenheiros de Portugal, que sucedeu à Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, fundada em 1869, em um contexto de forte valorização da tecnologia em toda a Europa. Sua criação foi formalizada em 1936, pelo Decreto-Lei nº 27.288, de 24 de novembro, e desde então exerce funções de regulação e fiscalização profissional. Na Argentina também há o Colégio de Engenheiros que garante a autorregulação. Já nos Estados Unidos, a regulamentação é feita de forma descentralizada pelos Estados, por meio dos Conselhos de Engenheiros Profissionais, que são órgãos governamentais responsáveis pela concessão das licenças em cada estado.
Os Estados Unidos contam ainda com uma entidade de âmbito nacional, o NCEES (National Council of Examiners for Engineering and Surveying), criado em 1920. Naquele período, dez estados já possuíam leis de registro de engenheiros, mas cada conselho estadual atuava de forma isolada, com requisitos distintos e sem reconhecer as licenças emitidas por outros estados. Para superar essa fragmentação, o Conselho de Examinadores de Iowa convocou uma reunião nacional, realizada em 8 de novembro de 1920, no Hotel Sherman, em Chicago. Sete estados atenderam ao chamado e, desse encontro, nasceu uma organização permanente, inicialmente chamada Council of Boards of Engineering Examiners. Seu objetivo era claro: promover a uniformização dos exames e registros, garantir a reciprocidade entre os estados e estabelecer padrões mínimos nacionais para o exercício da engenharia. Posteriormente, esse organismo evoluiu e se consolidou como o NCEES, responsável pela elaboração de exames padronizados, como o FE (Fundamentals of Engineering) e o PE (Principles and Practice of Engineering), hoje exigidos em praticamente todo o território americano como requisito fundamental para o licenciamento profissional.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 deixa evidente a lógica da separação entre exercício profissional, educação e ciência. O artigo 5º, inciso XIII, estabelece que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”, sendo que, no caso da engenharia, a lei que define tais qualificações é a Lei nº 5.194/1966. Já o inciso IX do mesmo artigo assegura que “é livre a expressão da atividade científica, independentemente de censura ou licença”, o que demonstra que no ambiente acadêmico e científico há plena liberdade para pesquisar, criar e experimentar. Além disso, o artigo 22 da Constituição separa de forma inequívoca as competências: cabe privativamente à União legislar sobre as condições para o exercício das profissões (inciso XVI) e sobre as diretrizes e bases da educação nacional (inciso XXIV). Assim, fica claro que o Sistema CONFEA/CREA se encarrega da regulação e fiscalização do exercício profissional, enquanto a SERES, Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior do MEC, é a responsável pela regulação e supervisão das Instituições de Educação Superior (IES), tendo como marco legal a Lei nº 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
Portanto, quando alguém afirma que o CREA “não serve para nada”, o que se revela é a falta de compreensão sobre sua real natureza e importância. O CREA não é uma jabuticaba brasileira, mas parte de um sistema internacionalmente consolidado de autorregulamentação estatal da engenharia. Criado como uma autarquia de natureza parafiscal, o CREA arrecada diretamente tributos federais, sem depender de repasses ou auxílio do governo federal. Além disso, os presidentes tanto do CONFEA (Conselho Federal de Engenharia e Agronomia) quanto dos CREAs são escolhidos por meio de eleições diretas, nas quais apenas os engenheiros votam, o que garante legitimidade democrática e uma autonomia institucional excepcional. Esse arranjo permite que o Sistema Confea/Crea exerça sua função fiscalizatória tanto no setor público quanto no privado, com independência e autoridade técnica, sempre em defesa da sociedade. Em síntese, o CREA serve para proteger a coletividade, assegurar a ética e a qualidade da engenharia e garantir que esta profissão essencial continue a trabalhar em favor da vida, do desenvolvimento e do progresso.
Artigo feito em colaboração com JOSÉ ALBERTO LUCAS MEDEIROS GUIMARÃES, Advogado e Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pelo Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão (PPGDir/UFMA).
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