(Divulgação)
COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Gaia, Vênus e Atena

Reproduzo aqui o texto do professor e escritor Antonio Aílton acerca do meu primeiro livro de poesia, intitulado O mar de vidro (2023).

Gabriela Lages Veloso

Atualizada em 04/01/2024 às 13h24

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Escrever é libertar-se de si mesmo.

É poder recriar o mundo

com o poder da palavra.

[…]

Escrever é ora um alento, ora um desconsolo.

É transitar entre mundos, eras e seres.

(Gabriela Lages Veloso)

Mais do que o privilégio de potencializar a linguagem, fazer brotar o livro enquanto objeto, como ensejo de “recriar o mundo” e transmudá-lo com o poder da palavra, é sempre uma felicidade. A escrita poética, por meio da beleza e da força vital do seu dizer, busca reverter o que está tão entulhado de violência, ganância, dissonâncias e disputas.

Feliz também de quem acolhe essa pulsão criadora, nós, leitores, que a recebemos como um presente que emerge das espumas do mar deste mundo, porque a linguagem, gerânio dos deuses, mostra-se como ainda capaz de se tornar jardim e delícia entre nossas agonias. Lembro aqui do poeta e dramaturgo Bertolt Brecht, que colocava entre suas “felicidades” a “descoberta de uma música nova”. Podemos nos sentir assim também com a chegada de uma poeta nova, de uma nova poesia, ainda mais quando esta de algum modo nos eleva para além da mesmice.

Ilustração: Bruna Lages Veloso
Ilustração: Bruna Lages Veloso

O mar de vidro de Gabriela Lages Veloso chegou a nós no início de dezembro de 2023. E já nasceu ousado. Foi lançado no nobre salão da Academia Maranhense de Letras, que é um espaço canônico e, em outros tempos, carregado de adjetivos austeros. Mas não nestes dias diversos, é claro, em que a própria Academia quebra (precisa quebrar) paradigmas e se alia às feições e reivindicações contemporâneas – e em que nós mesmos, vozes cotidianas, a impregnamos de nossas reivindicações e de nossas irrupções. Gabriela se faz presente nessa mediação.

Trata-se de um livro delicado, de linguagem límpida, porém com o peso certo da intimidade, da consciência do ser feminino, das evocações e da convocação certeira à reflexão, como se fosse aquela Borboleta azul, de índole telúrica, que diz: “Em tuas delicadas/ asas furta-cor/tu carregas a/ metamorfose do tempo” (p. 20).

Capa do livro O mar de vidro (2023)
Capa do livro O mar de vidro (2023)

Figuras simbólicas compõem o lastro imaginário dessa lírica nas suficientes páginas.  As três partes nas quais se dividem o livro recebem nomes de poderosas deusas da mitologia greco-romana, que dão a diretriz de suas instâncias poético-reflexivas: Gaia (15 poemas), Vênus (14 poemas) e Atena (15 poemas). Gaia, de tom mais grave, sabemos, traz essa simbologia da ligação com a terra e a pedra, com as origens, inclusive da linguagem inaugural que busca o nome das coisas; a ligação com o local, tal como surge no poema A grande ilha, o maior do livro (p. 26-28), além da ligação com os elementos mesmo mínimos da natureza, à qual precisamos atentar. Vênus, por sua vez, já é a insinuação da beleza, do corpo e de sua colocação na vida, não sem aquela pontinha de sensualidade e sensibilidade, em que a mulher toma seu lugar como beleza, como flor-estrela/Aster, ou como questionamento da vida mirrada e silenciada, isto é, no avesso do esplendor venusiano como em Macabéa (p. 46):

 

Com quantas Macabéas se faz

o mundo? Mulheres pacatas,

desajeitadas, silenciadas, que

quase não deixam marcadas

suas imagens no espelho.

 

Macabéa, até quando aceitarás

O destino que te impuseram?

Até quando permanecerás invisível?

 

É também nessa segunda parte que encontramos o poema que dá nome ao livro, O mar de vidro, poema este que enfeixa a unidade maior do livro com a imagem reiterada do espelho. Esse “espelho”, mar revolto de refacção da própria imagem, de contemplação do mundo e dos abismos, e que carrega ao mesmo tempo a illusio narcísica, “atração, medos e confrontos com a verdade” e a fragilidade (de vidro), constitui-se como  o próprio vórtice do livro e já é prenunciado desde a epígrafe, invocada do Água Viva de Clarice Lispector: “Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente, sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe”.

Por fim, é em Atena que Gabriela Lages se manifesta de maneira talvez mais contundente. É aqui que ela, mesmo como a jovem que é, mostra uma experiência surpreendente, e assume de fato um discurso da persona da sabedoria, unida à guardiã das artes, dos artifícios e da guerra, prerrogativas da grande Atena. E esta é a figura simbólica que, ousaria dizer, percorre toda essa obra, junto com a ideia do espelho e, outra imagem, a sombra da esfinge. É preciso um fundo dessa sabedoria para se lidar com certas questões que exigem percepções vitais e maturidade, como o tempo, no qual se pode deslindar o que é destinação significativa do que seja simplesmente vacilo e errância:

 

Tempo

 

Não é preciso viver mil

primaveras para fazer

as pazes com o tempo.

Nem tampouco para

ser dele um eterno aprendiz

 

[…]

 

Mas cuidado para não

te tornares um refém

do amanhã, à mercê das

Moiras, que insistem em

determinar as linhas do destino.

Não sejas prisioneiro delas.

 

Antes de ser simplesmente

levado ao acaso, torna-te o

guia dessa jornada. Para

que, assim, encontres o

equilíbrio necessário para

tecer o grande novelo da vida.

 

(p. 57-58)

 

Se, num momento ou noutro, encontramos certos traços de um processo inicial de escrita, ou certos recursos de efeitos familiares, como a enumeração, o que, no final das contas, podemos encontrar também em maior ou menor grau em todos os que lidamos com o fazer poético, com seu O mar de vidro, Gabriela Lages Veloso constrói aquele mundo próprio e autêntico a que se propõe, uma feição autônoma e forte, de quem tem o que dizer e acrescentar. De modo firme e sensível, sua convocação se impõe para impelir nossa experiência íntima, nosso grito à frente ou atrás do espelho, ao encontro do que ela verbaliza invocando um imaginário tão simbólico e tão rico. Não é isso o que faz um(a) poeta? Não é isso poesia? Felicidade é saber que a mensagem das deusas ainda se faz, ou se faz e atualiza, com ela, poderosamente, em nossas mãos.

 

REFERÊNCIAS:

LISPECTOR, Clarice. Água Viva [1973]. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2020.

VELOSO, Gabriela Lages. O mar de vidro. Belo Horizonte: Caravana, 2023.

 ***

SOBRE O ENSAÍSTA: Antonio Aílton, editor do portal Sacada Literária, é poeta, crítico literário, professor, pesquisador e autor dos livros Martelo & Flor: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea (EDUFMA, 2018) e A Camiseta de Atlas (EDUFMA, 2023), dentre outros.

 

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