Meia-Vida
Em 2020, a escritora portuguesa Ana Cláudia Santos publicou o seu primeiro livro de poesia: Meia-Vida, que conta com ilustrações do artista plástico João Massano.
A poeta portuguesa Ana Cláudia Santos é host do podcast Multiversos, da rádio NiT FM, e produtora dos eventos de poesia “L.U.A. – Literatura, Universo, Artes” e “Sala Incomum”.
Além disso, é embaixadora do projeto “Agarra-te”, da SABSEG, e poeta residente da Casa Florbela Espanca. É formada em Literatura, pela UNL, e Escrita Literária, e, Produção e Marketing de Eventos, pela Restart Creative Education.
Em 2020, Ana Cláudia publicou o seu primeiro livro de poesia independente: Meia-Vida, que conta com ilustrações do artista plástico João Massano, e foi lançado na Livraria Ler Devagar, em Portugal.
Ao ler Meia-Vida, encontrei alguns enigmas do universo, e da existência, sobre os quais gosto de refletir e escrever. Me identifiquei com a escrita de Ana Cláudia, pois me lembrou meu livro favorito: Água Viva, de Clarice Lispector.
Meia-Vida reúne 14 poemas de tom místico e filosófico, e apresenta uma jornada labiríntica (e borgeana) em busca dos mistérios da existência, tal como podemos notar no poema Princípio (SANTOS, 2020, p. 12-15):
Princípio
A primeira crise existencial do meu íntimo
Foi num dia em que a minha casa estava com muita claridade.
Foi assim que a minha criança de seis anos a fotografou.
A memória está pegada
Mas viscosa.
Na casa de banho do andar de baixo
Os pormenores da divisão estão-me gravados
Como dourados
Resplandecentes
O lavatório cor de ouro
Os perfumes da minha mãe
A banheira ornamentada
E muita luz.
Olhei-me ao espelho
Que singularmente não emitia luz.
Pensei:
Esta pessoa sou eu
Esta pessoa
Sou
Ser
Eu.
Um calafrio.
Uma sensação nunca antes sentida
Foi o que senti.
E mal sabia eu que me iria ser tão familiar.
O meu rosto não era o meu rosto
Deveria ser, mas já não era.
Pela primeira vez via-me de forma desconhecida
A minha visão via por outro prisma
Outro
Que reconheço agora qual é
Mas na altura
Me horrificou os ossos.
Hoje e no futuro continua-me a horrificar.
Aceitei-o há anos.
A sala de estar era uma divisão muito iluminada
Estava decorada em tons verdes, pretos e castanhos claros.
No meio da sala, pensei:
O meu braço
E verifiquei o meu braço
O quadro
E verifiquei o quadro
Isto está a acontecer
E verifiquei a realidade
Eu estou a sentir
E senti a realidade a acontecer
Pela primeira vez na minha vida
Pela primeira vez na minha vida, senti-me a existir.
Percebi! Existo - e estou a existir!
Pensando no meu braço, sentia-me a ir embora
O medo da sensação de ir embora
Horrificou-me de novo
Tentei não pensar na sensação
Pois excedendo certa orla
Iria embora com a realidade.
Estou aqui
Aqui
Não estou aqui
Estou
Não
Estou
Uma sensação de horror começou
E deixei ir o pensamento………………….
E o pensar fez-me sentir e ficar longe………………….
Longe da minha sala………………….
Senti-me oblíqua
E senti-o para a eternidade desta vida.
Sentei-me na posição pensadora………………….
E estreou-se aí a mágoa de pensar
Muito, muito
Sobre o que é isto
E que vida é esta.
Iniciou-se aí
O peso do raciocínio que nunca chegou.
Mas existe um convite para que o(a) leitor(a) não seja um mero observador e também embarque nessa jornada, mapeando os sentidos. Por isso, o eu-lírico afirma:
“Ajuda-me a compreender que história é esta. Até agora sei que a minha alma existe ainda à procura do oásis da existência. O meu desígnio sempre foi encontrar a substância, a medula da minha presença nesta realidade” (SANTOS, 2020, p. 10).
Assim, por entre espelhos, memórias, fragmentos do universo e reflexões, o eu-lírico chega à algumas descobertas: “A consciência sagrada não se atinge pela lógica”, “O cofre da terra não está na verdade da terra” e “O espírito não morre quando morre o corpo”.
REFERÊNCIAS:
LISPECTOR, Clarice. Água Viva [1973]. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2020.
SANTOS, Ana Cláudia. Meia-Vida. Lisboa, Portugal, 2020.
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