(Divulgação)
COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

O mar de vidro

Reproduzo aqui o texto do professor e escritor José Neres acerca do meu primeiro livro de poesia, intitulado O mar de vidro (2023).

José Neres

Atualizada em 01/02/2024 às 18h01

O mar é um dos elementos mais revisitados pelos amantes da literatura. Foi zingrando pelos mares que Ulisses enfrentou muitos dos mistérios que tentavam separá-lo de sua amada Penélope. Foi pelas ondas do mar que Dido pressentiu a partida de seu amado Enéias e então decidiu pôr fim à própria vida. É na empolgante narrativa de Victor Hugo intitulada Os Trabalhadores do Mar (1866) que muitas pessoas passaram a conhecer e a compartilhar a trágica sina de Gilliatt ao tentar enfrentar tanto as forças da natureza, quanto os desafios impostos pelo amor. É nas ondas mar que acompanhamos a obsessão do capitão Ahab em perseguir em eliminar a baleia Moby Dick.

É do mar também que pescamos um pouco da imensa solidão de Santiago, o protagonista de O Velho e o Mar (1952), obra-prima de Ernest Hemingway. É a partir do cenário marítimo que passamos a conviver também com o doentio ciúme de Mestre Severino, personagem marcante de Cais da Sagração (1971), de Josué Montello, e somos embalados pelos cantos de Guma, protagonista de Jorge Amado no poético romance Mar Morto (1936). Foi no mar também que Camões ambientou algumas das cenas mais emblemáticas de seu Os Lusíadas (1572). Quem não se lembra do episódio do Velho do Restelo, do Gigante Adamastor, da chegada dos navegantes à Ilha dos Amores?

Ilustração: Bruna Lages Veloso
Ilustração: Bruna Lages Veloso

O mar está presente em boa parte de nossa literatura. Seja como ambiente, seja como metáfora, seja como recordação. O mar emoldura toda uma tradição literária e serve como local propício para o contato com encantamentos e com personagens capazes de nos levar à reflexão sobre nosso ser e estar no mundo.

E agora, em pleno início de século XXI, a imensidão do mar, da terra e do próprio desconhecido Ser reaparece em aproximadamente setenta páginas do livro da jovem escritora Gabriela Lages Veloso, que já iniciou sua jornada, mas que agora decidiu enfeixar seus trabalhos poéticos em um livro com o significativo título de O Mar de Vidro (2023). Não o Nariz de Vidro (1984) já imortalizado por Mário Quintana, nem o Coração de Vidro (1964), romance de relativo sucesso de José Mauro de Vasconcelos, nem OJogo das Contas de Vidro (1943), de Hermann Hesse, ganhador do Prêmio Nobel de 1946, mas sim O Mar de Vidro (2023), da maranhense Gabriela Lages Veloso…

Primeiro é preciso advertir que esse “Mar de Vidro” de que trata o título tem diversas significações. Tanto pode remeter à fragmentação do Ser, quanto à poluição, quanto às múltiplas fraturas sociais que são expostas nos versos do livro. De qualquer forma, é um livro de dilemas. E “Dilema” é, significativamente, o título de um dos poemas, que diz o seguinte:

 

“Pessoas. Animais. Plantas.

Somos a natureza. 

Então, por que ferimos a nós mesmos? 

 

Para que tanta violência?

Fome é violência. 

Desmatamento é violência. 

Cárcere é violência. 

 

Ser ou não ser? Essa é a questão.”  (p. 23).

Essa fragmentação de um vidro quebrado transparece também no estilo da autora, que não está preocupada em repetir formas e fórmulas, mas que não esconde suas referências e deferências com relação às suas leituras. Em alguns momentos, ela fragmenta também o discurso, mas sem romper seu fluxo e traz à memória do leitor o Circuito fechado (1978), que imortalizou Ricardo Ramos e A Pesca (1975), poema de Affonso Romano de Sant’Anna, em uma comprovação da tese do dialogismo defendido por Bakhtin e da intertextualidade, de Julia Kristeva conforme pode ser visto em “A Cidade”, que pode ser lido na página 24 do livro: 

        

A Cidade.

 

Trânsito. 

Asfalto. 

Luzes. 

Pontes. Praças. Pedras.

 

 Ruas. 

Avenidas.

Rodovias. 

Velocidade. Multidão. Lixo. 

 

Casas. 

Prédios. 

Palafitas. 

Rastros. Rostos. Restos.

 

É possível notar nesses versos não apenas uma preocupação social, mas também um cuidado com a tessitura das palavras, com o ritmo dos versos, com o processo de logopeia associado ao de fanopeia, como nos ensinou Ezra Pound em seu ABC da Literatura (1934).

A divisão do livro se dá em três partes: Gaia, Vênus e Atena, todas elas bem articuladas entre si, com diversos poemas que já foram premiados em concursos, demonstra o cuidado da autora para com a construção de sua obra e com a defesa do que pode ser chamado Universo Feminino, com a preservação da natureza e com as possibilidades de (re)criação do tudo e do todo. Vênus remete à beleza, ao amor, mas, no livro, também remete às dúvidas do dia a dia, aos questionamentos acerca dos encontros e dos desencontros, presenças e ausência que marcam toda uma existência. Na última parte – intitulada Atena – impera o lado consciente e estratégico do olhar feminino, de uma tentativa de sobrevivência em meio às intempéries da vida. 

Nessa última parte do livro, o leitor sente a sensação da tacocronia, da aceleração de um irrefreável tempo. Escutem o que diz a autora no início do poema “Relógio de Areia”, que está na página 59:

 

Nunca se engane com as pequenas coisas, 

elas são mais cruciais do que se imagina. 

A arte nos faz sentir, ver, ouvir 

e viver outras vidas,

por isso, tem sido como água 

nesse deserto sem fim.

 

O livro de Gabriela Lages Veloso está carregado de bons versos e, embora exija atenção a alguns detalhes que se escondem por trás das palavras, pode ser lido por pessoas de todas as idades e de todas as esferas sociais, pois nele sempre há algo que atinge cada um de nós.

REFERÊNCIAS:     

AMADO, Jorge. Mar Morto [1936]. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas [1572]. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2012.

HEMINGWAY, Ernest. O Velho e o Mar [1952]. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

HERMANN, Hesse. O Jogo das Contas de Vidro [1943]. Rio de Janeiro: Record, 2020.

HOMERO. Odisséia. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar [1866]. Tradução de Jorge Coli. São Paulo: Editora UNESP, 2023.

MELVILLE, Herman. Moby Dick ou A baleia [1851]. São Paulo: Editora 34, 2019.

MONTELLO, Josué. Cais da Sagração [1971]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

POUND, Ezra. ABC da Literatura [1934]. São Paulo: Cultrix, 2013.

QUINTANA, Mário. Nariz de Vidro [1984]. São Paulo: Editora Moderna, 2003.

RAMOS, Ricardo. Circuito fechado. Rio de Janeiro: Record, 1978.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Poesia sobre poesia. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

VASCONCELOS, José Mauro de. Coração de Vidro [1964]. São Paulo: Melhoramentos, 2019.

VELOSO, Gabriela Lages. O mar de vidro. Belo Horizonte: Caravana, 2023.

VIRGÍLIO. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2014.

***

SOBRE O ENSAÍSTA: José Neres é escritor, professor, crítico literário e membro das Academias Maranhense e Ludovicense de Letras.

 

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