(Divulgação)
COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Poesia, Ofício e Vida

Reproduzo aqui o texto da escritora e poeta Sílvia Mota Lopes acerca do meu primeiro livro de poesia, intitulado O mar de vidro (2023).

Gabriela Lages Veloso

Ilustração: Bruna Lages Veloso
Ilustração: Bruna Lages Veloso

Recebi o livro de poesia O mar de vidro (2023), de Gabriela Lages Veloso. Foi um prazer deliciar-me com os seus versos. É preciso ler demoradamente para melhor interpretar e compreender. Sentir a poesia na sua plenitude. Numa primeira instância, para a usufruir naturalmente, sem muitas preocupações éticas, estéticas, nem formais, e posteriormente, no sentido de lhe dar mais relevo para poder escrever um pouco sobre ele. O livro aborda temas pertinentes como a terra representada pela deusa Gaia, aliás o livro inicia com um poema com esse título. Gaia é a representação da mulher, da mãe, da terra, do ventre, da geradora e testemunha do tempo. 

“Gaia” também simboliza as estações e a vida como uma longa estrada percorrida (e que ainda temos muito a percorrer). No segundo poema, intitulado “A origem”, a autora sente a preocupação de explicar e justificar porque escreve, ou seja, a sua missão, uma missão difícil como comunicadora, no sentido de se expressar através da arte da palavra. Expor as suas preocupações, individuais e coletivas, capturar a essência dos seres da terra, contar uma história através da palavra. Neste poema é visível o desassossego nas interpelações que faz, no entanto, sabendo de antemão a sua resposta, como podemos notar nos últimos versos:

 

Nessa minha difícil missão,

vivo sobressaltado.

E se um dia eu esquecer as palavras? 


Como algo tão pequeno pode conter o mundo?

A palavra contém o mundo.

(Veloso, 2023, p. 16).



 

No decorrer do livro, percebemos que o eu lírico encarna vários sujeitos, gêneros (feminino e masculino) e elementos, como por exemplo, a água nos seus diferentes estados, tal como no poema “A água”. Nele sente-se a responsabilidade do elemento em relação ao ciclo da vida, ao sustento de todos os seres vivos. Nesse poema, algumas vezes, a água é tempestuosa, já em outras é tranquila, mas sempre tem o poder regenerador. Entretanto, a autora deixa uma ressalva, existe vida apenas se houver reciprocidade, como se lê nos últimos três versos dessa poesia:


Em todas as minhas formas,

cuido e sustento a vida.

Tudo o que peço é reciprocidade.

(Veloso, 2023, p. 17).



A água é, talvez, o elemento mais relevante no livro de Gabriela Lages Veloso, por isso a escolha do título O mar de vidro. É importante ressaltar que o poema “O Mar de Vidro”, que dá nome à obra, ganhou o segundo lugar no Prêmio Emílio Lansac Toha, que foi promovido pela Academia de Letras de São João da Boa Vista (SP), no ano de 2022. Para além deste prêmio, outras poesias da autora foram finalistas em concursos literários como, por exemplo, o poema “O mar”. 

Eis novamente a aparição do mar, da água, do sal, da imensidão. Em “O mar”, a água é entendida como um espelho, um reflexo da imagem, bem como a busca do ser nas suas profundezas. Após termos um encontro com o inconsciente, conhecemos melhor a nós mesmos. Nesse poema, o mar representa a liberdade e, paradoxalmente, a limitação pois, segundo o eu poético, quem atravessa o mar, nem que seja com o olhar, dificilmente retornará ao porto:


 

Nessa jornada, tens a 

lua como guia das tuas

marés. Quem atravessa

tuas águas, mesmo que

somente com o olhar,

sente a difícil liberdade

de retornar ao porto.

(Veloso, 2023, p. 18).



 

É digno de nota que a poeta escolheu um trecho do romance Água Viva, de Clarice Lispector, para a epígrafe do seu livro: “Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe” (Lispector, 1998, p. 55). É fundamental retirar destas palavras a mensagem principal da obra de Gabriela, uma vez que o espelho reflete não somente a nossa imagem, mas também o nosso “eu” mais profundo, a nossa alma. Essa viagem interior que cada um de nós empreende (deve empreender), no decorrer da vida, nos leva a um melhor conhecimento sobre o mundo — com suas fragilidades e desafios — e sobre nós mesmos, com nossas contradições e dualismos. 

Partindo dessa dicotomia da vida, a autora dedica a sua obra à “vida e seu labirinto de espelhos”. A vida pode, então, ser compreendida como uma sucessão de labirintos, nos quais nos perdemos e nos encontramos, o que se faz necessário para tomarmos consciência de nós mesmos. De dentro para fora e de fora para dentro, estamos sempre em construção, em aprendizagem contínua, conectados com tudo o que existe, seja visível ou invisível, material ou incorpóreo. 

O mar de vidro é dividido em três partes, sendo que cada uma delas é identificada com o nome de uma deusa greco-romana, a saber: “Gaia”, “Vênus” e “Atena”. Na primeira parte do livro, intitulada “Gaia”, é notória a preocupação do eu lírico com a degradação do meio ambiente, o flagelo da violência e da destruição, o egoísmo, a guerra, entre outras temáticas. No Poema “Pombo”, por exemplo, a poeta faz referência a essa ave, que já foi tida como símbolo da paz mas, atualmente, é sinônimo de algo negativo (poluição), e a sua presença no mundo, como podemos confirmar nos versos a seguir:



 

Pombo 

Em tempos remotos, 

eras símbolo de paz. 

Hoje, és sinônimo de 

sujeira e lixo. Tu absorves 

o mundo circundante

(Veloso, 2023, p. 22).


Já no poema “Ouroboros”, que encerra a primeira parte do livro, a deusa Gaia retorna aos versos da poeta, revolvida pela raça humana, em prol da sua sobrevivência. Os humanos sugavam os recursos que ela lhes dava, caminhando sem destino, até o dia em que eles perceberam que podiam cultivar o seu próprio alimento e a afeiçoar-se ao lugar, criando raízes, e fazendo dele, quiçá, o seu lar. No entanto, a raça humana tem como principal característica a eterna busca pelo desconhecido, pelo inexplorado, por algo que ainda não lhe atribuiu nome e perde-se, de novo, nessa busca e ambição constante, nos ciclos sem fim de Gaia. 

Na segunda parte deparamo-nos com Vênus, a deusa da beleza e do amor. Essa seção é composta por catorze poemas, mais focados nas estações cíclicas, no tempo, na metamorfose, na metáfora dos espelhos, no silêncio que pulsa, grita e controla as marés, na luz e na sombra. No poema “A casa”, é percetível a herança poética de outros grandes escritores, sobretudo o enorme e inconfundível Manoel de Barros, no instante em que a poeta Gabriela Lages diz nos versos do referido poema: “Sou repleta de inutilidades” e “Sou rica em miudezas” (Veloso, 2023, p. 38). 

Conforme Harold Bloom (1991), em seu livro A angústia da influência: uma teoria da poesia: “O poeta não é um ego autônomo, todo o poeta é apanhado por uma relação dialética (transferência, repetição erro, comunicação) com outro poeta ou poetas”. Gabriela Lages Veloso não é uma exceção, assim como os demais poetas, ela tem heranças e está em comunicação constante com outros escritores, mesmo que inconscientemente. Já no poema “Sobre Viver”, a poeta brinca com a palavra, desdobrando-a em duas para a (des)construir e dar-lhe novos significados. A sua casa é o mundo e na sua (in)visibilidade anda “para sempre e nunca”. 

Ainda nessa segunda parte do livro, a autora dedica o poema “Selene” à sua irmã Bruna Lages Veloso, e o poema “Aster”, in memorian, à sua amiga Kátia Lima, dando ênfase à amizade autêntica e desinteressada, às vivências que ficam e vivem nas memórias. Nos dois últimos poemas da seção Vênus, intitulados “(Re)lembrança” e “Libertas”, a mulher é a figura principal. Neles é feito um apelo a todas as mulheres, de todos os tempos — passado, presente e futuro — para que tudo o que elas viveram não seja apagado. Desse modo, o eu lírico afirma que escreve porque acredita que somos todos iguais, independentemente da cor, do gênero ou credo:


Escrevo porque acredito

que somos todos iguais,

independente de cor, gênero ou fé.



Escrevo para que nossas

conquistas não sejam

levadas pelo vento.

(Veloso, 2023, p. 47).


E, no poema “Libertas”, o eu poético declara que “nada pode/ controlar uma mente livre” (Veloso, 2023, p. 48). Atena é a deusa da sabedoria, da inteligência, das artes, da guerra e da justiça, e foi a terceira e última divindade que Gabriela escolheu como mote para os quinze poemas desta parte final de O mar de vidro. É nessa última seção do livro que se constata palpavelmente a metapoesia, ou seja, nos poemas a poeta transmite os motivos da sua escrita, o seu processo criativo e a importância da escrita em sua vida. O poema “O eco de Atenas” é uma prova disso:


 

O eco de Atenas

 

Eu, e minhas circunstâncias,

caminhamos, lado a lado,

rumo ao desconhecido,

tendo a poesia como guia.


Por ruas de cantaria,

pelo labirinto de becos

e escadarias, escuta-se

o eco do silêncio.


Do silêncio surge a poesia,

ela vem envolta nas cores

dos azulejos, no canto dos

bem-te-vis, nas ondas do mar.


Dos sobrados e igrejas,

ecoam lendas e mistérios,

a poesia destilada da saudade.

(Veloso, 2023, p. 51).



 

Por sua vez, o poema “eScrEveR”, pela forma como o título está escrito, transporta-nos de imediato para dois conceitos e ações: Escrever e Ser, ou Ser e Escrever. Nessa poesia, o eu lírico apresenta, com maestria, ao leitor a importância do ato de escrever e o poder da palavra como recriadora do mundo, tal como podemos notar nos seguintes versos:

 

Escrever é libertar-se de si mesmo.

É poder recriar o mundo

com o poder da palavra.


 

Escrever é dar asas à imaginação.

É contemplar o mundo com outros olhos.

Escrever é ora um alento, ora um desconsolo.

É transitar entre mundos, eras e seres.

(Veloso, 2023, p. 54).



No poema “Relógio de areia”, o eu poético faz referência ao tempo pandêmico (COVID-19), e seus impactos na vida da população mundial. Visto que o vírus surgiu inesperadamente, por isso, todos foram pegos desprevenidos e despreparados para tal situação. Tudo seguia o seu curso normal, até o momento em que a pandemia fez tudo parar e desmoronar, mas a arte foi (e continua sendo) a nossa estrela-guia:


 

Relógio de areia

Nunca se engane com as pequenas coisas,

elas são mais cruciais do que se imagina.

A arte nos faz sentir, ver, ouvir

e viver outras vidas,

por isso, tem sido como água

nesse deserto sem fim.



No ir e vir das ondas da vida,

nos deparamos com situações

que modificam-nos permanentemente.

Em um dia, tudo seguia o seu curso,

o tempo era cronometrado à conta gotas,

e todos corriam, perdidos

em seus próprios mundos.



No dia seguinte, o mundo parou.

A pandemia desacelerou os relógios,

e, abruptamente, levou vários entes queridos.

Tudo o que antes era ignorado,

ganhou um novo significado.

A vida ganhou uma nova cor.



De repente, percebemos

a nossa transitoriedade,

somos apenas passageiros nesse mundo.

Só então, notamos que existe 

um universo além de nós.



Mas atravessar desertos exige coragem.

Às vezes, é preciso deslocar a rota

para encontrar o caminho.

Assim, a arte tem sido a nossa bússola. 

(Veloso, 2023, p. 59-60).



Para além desses poemas, os seguintes transmitem mensagens cruciais de reflexão, conduzem-nos no sentido de darmos mais importância ao nosso olhar, no sentido de vermos melhor, pois “o essencial é invisível aos olhos”. Essa reflexão é retirada do livro O pequeno príncipe, de Antoine de Saint- Exupéry, e utilizada no poema “(Re)ver”, de Gabriela Lages: “O essencial/ torna-se invisível aos olhos,/ consciente ou inconscientemente” (Veloso, 2023, p. 61). Podemos notar outra importante referência no poema “(Re)começo”, desta feita, ao mito da caverna de Platão:



Recomeço


Dias iguais, formam pessoas

iguais, que vivem vidas iguais.

E, assim, o ciclo recomeça.

Até o instante em que um

livro é aberto. E a realidade

salta diante de um par de

olhos atentos, de alguém

que será tachado de ridículo

por pessoas ocupadas pelo

cotidiano. Tanto tempo se

passou, mas ainda temos

medo de sair da caverna.

(Veloso, 2023, p. 62).



 

Por outro lado, o poema “(Re)viver”, reforça a importância da arte como emancipadora, tal como se verifica nos últimos versos: “A arte –/ em cada nota, tinta ou/ letra – salva vidas.” (Veloso, 2023, p. 64). Também a bondade, a generosidade, estão estampadas na poesia da Gabriela Lages, bem como o(s) propósito(s) da vida. O mar de vidro se encerra com um poema que é, de fato, um hino à liberdade. Nele, o eu lírico nos revela o que é ser livre. 

Ser livre é respeitar o outro, nas suas diferenças, nas suas escolhas, nas suas características. Ser livre é, para a poeta, “sair da caverna”, “libertar o outro”, “despir-se de preconceitos” e “reinventar, diariamente, a vida/ Ser livre exige”. (Veloso, 2023, p. 68). Também para escrever é necessária coragem, porque o ofício da escrita é algo que é intrínseco, íntimo, subjetivo e sensitivo. Através da palavra transmitimos o indizível, e ele é, sem sombra de dúvida, arte.

O mar de vidro (2023) é o primeiro livro de Gabriela Lages Veloso e certamente não será o último. A escritora, tal como nos transmite através de sua poesia, é um ser humilde, um ser que tem consciência de que está em constante evolução e crescimento. Tudo é construção e aprendizagem, por isso mesmo, tenho plena certeza que a Gabriela nos vai brindar com mais poesia, sempre com mais maturidade, o que será sinónimo das suas experiências e vivências, sejam elas existenciais, literárias ou artísticas. 



REFERÊNCIAS:

BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia [1973]. Tradução e apresentação de Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro, Imago, 1991.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva [1973]. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2020.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O pequeno príncipe [1943]. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

VELOSO, Gabriela Lages. O mar de vidro. Belo Horizonte: Caravana, 2023. Disponível em: <https://caravanagrupoeditorial.com.br/produto/o-mar-de-vidro/>. Acesso em: 13/07/24.


***

SOBRE A ENSAÍSTA: Sílvia Mota Lopes, natural de Braga (Portugal), é escritora, poeta, pintora e ilustradora. Já participou de diversas antologias poéticas e exposições artísticas em cidades como Braga, Guimarães, Barcelos, dentre outras. É autora dos livros Alícia no Bosque (2012), Ser dia e Noite Ser (2013), É Aqui Que Ela Mora (2015), Esboço (2017), Dar Corda às Palavras (2018), Passei Como Um Sussurro para que escutasses o Vento (2019), Túnica íntima (2022) e Ofício Volátil da Memória (2023). 

 

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