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COLUNA
Marcos Silva
Marcos Silva Marcos Silva é assistente social, historiador e sociólogo.
Marcos Silva

Brasil, 2 (dois) séculos de conflitos entre privado e público no saneamento básico

Os conflitos entre os vários grupos sociais e étnicos que compõem o Brasil desde a invasão pelos portugueses resultaram em um projeto político de nação diversificado.

Marcos Silva

Os conflitos entre os vários grupos sociais e étnicos que compõem o Brasil desde a invasão pelos portugueses resultaram em um projeto político de nação diversificado. Embora o que tenha prevalecido em todos os períodos até a atualidade foi a manutenção dos privilégios e riquezas nas mãos das elites econômicas. Tal situação se realizou em detrimento dos segmentos explorados e oprimidos que sempre foram renegados à própria sorte (a maioria da população). Isto refletiu a apropriação e usufruto dos bens e serviços, assim como dos meios de produção e apropriação privada das riquezas produzidas socialmente. 

Assim, nas primeiras duas décadas do século XXI, o Brasil é uma das nações com intensa desigualdade comparada a outras no mundo. Então, essa realidade se gera em praticamente todos os aspectos e, sobretudo, em se tratando de concentração de renda e da concentração fundiária. No item saneamento, os dados são mais dramáticos e refletem uma situação histórica de carências na oferta dos serviços de abastecimento, esgotamento sanitário, drenagem de águas pluviais e coleta dos resíduos sólidos.

As políticas públicas de saneamento não conseguiram lograr o acesso universal aos serviços de abastecimento de água; longe disso, o país ainda apresenta indicadores que apontam para uma insuficiência persistente de atendimento, especialmente para as populações de baixa renda nas metrópoles e nos municípios pobres e para as populações rurais (HELLER, 2018). 

Aqui, analisa-se o desenvolvimento da política de saneamento no país, bem como se localiza o início das ações relativas a essa política instalada no decorrer da história do Brasil, para compreender cada momento: como se desenvolveu e quem mais se beneficiou. Por outro lado, enfatiza-se a importância da luta pela universalização do saneamento e por uma política de financiamento público com controle social.

Historicamente o ser humano sempre procurou se localizar às margens dos rios, foi assim durante os tempos de nômades. Pois posteriormente passa para os tempos de sedentarismo com a construção de moradias próximas às fontes de água em função deste recurso ser essencial à satisfação das necessidades básicas humanas.

Na medida em que foram sendo desenvolvidas e difundidas técnicas de exploração e distribuição de água mais eficazes, o ser humano pôde desenvolver atividades e expandir seus domínios de moradia e produção para locais cada vez mais distantes desses recursos. Nota-se deste modo, a expansão urbana disseminada de forma crescente, conduzida em grande parte por agentes produtores do espaço, através do domínio da técnica e da informação, mas, sobretudo, pelo poder de influência política e econômica.

Apesar do avanço da urbanização, as comunidades indígenas, por exemplo, já se preocupavam com o armazenamento de água em reservatórios. Elas usavam telhas de barro e argila para fazer a reservação, sendo que algumas, onde os rios eram distantes, faziam cacimbas e poços para captar água com mais facilidade.

No Brasil, os primeiros empregados do saneamento básico enquanto entregador de água e recebedor da água usada para assegurar o descarte. Os escravos carregavam águas para os seus senhores para uso doméstico; parte desses senhores era proprietário de sistema de distribuição de águas nas cidades no período Imperial. Tais escravos também conduziam os excrementos em vasilhas para despejar no litoral ou em outros locais afastados dos domicílios dos senhores.

Com o desenvolvimento das cidades, as técnicas referentes ao saneamento foram melhorando. Já no período colonial foram organizadas as fontes e bicas, logo depois os chafarizes para uso comum pela população pobre. Os ricos tinham o privilégio de ter em seus domicílios água entregues por escravos.

Em 1723 foi construído o primeiro aqueduto no Brasil, isto é, os Arcos da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Em 1808, a vinda da corte portuguesa para o país e em seguida (1810), a abertura dos portos para as nações estrangeiras, geraram grandes impactos, sobretudo, na região metropolitana. Merece destaque o crescimento demográfico. A população passou de 50 mil habitantes, em 1812, para 100 mil moradores no ano de 1822. Com o crescimento da população ficou mais complexo o atendimento às necessidades das pessoas quanto aos serviços de abastecimento de água.

Em 1840, foi criada uma empresa para realizar os serviços de distribuição de água na cidade do Rio de Janeiro. A referida empresa tinha uma frota de carroças-pipas para o transporte do líquido precioso para as casas de pessoas que tinham poder de pagamento pelos serviços. Do século XVIII ao início do século XX as províncias começam a entregar os serviços para o capital estrangeiro, principalmente o inglês. De 1857 a 1877 o governo de São Paulo, após a assinatura de um contrato com a empresa Achellis Martin D´estaduns, construiu o primeiro sistema de águas encanada, o Cantareira.

Em 1861 foi construído na cidade de Porto Alegre, o primeiro sistema de água. Em 1876 o Rio de Janeiro passou a utilizar o Decantador Dortmund, pioneiro na instalação em nível mundial de uma estação de tratamento de água. É importante registrar que na época do Império, os escravizados eram os responsáveis pelo transporte da água dos chafarizes até as casas dos seus senhores (DHEYTÉCNICA, 2019).

Diante do caótico quadro de doenças epidêmicas existentes no país durante o final do século XIX e início do século XX, foi importante a construção dos primeiros espaços de abastecimento de água, com um maior cuidado com a higiene e a qualidade da água ofertada. No início da segunda década do século XX, passa a se expandir a exploração dos serviços pelo capital privado e estrangeiro. No entanto, bastou 2 (duas) décadas para se mostrar ineficiente elitista. Pois as insatisfações com a prestação dos serviços e com os custos foram se espalhando pelas camadas sociais médias. Assim, começou o processo de estatização dos serviços. Os governos passaram a ver a necessidade de fazer investimentos em saneamento visando a redução das desigualdades.

A situação era de tal gravidade que o Brasil, entre o final do século XIX e começo do século XX, era conhecido no exterior como um país de epidemias (febre amarela e outras), por conta do aumento da poluição, produto da imigração e da falta de planejamento urbano. Em 1930, todas as capitais já possuíam abastecimento de água e algumas delas tinham sistemas de coleta de esgoto: afastamento dos dejetos, porém, sem tratamento.

Nos anos 40 do século XX, a partir do primeiro governo de Vargas, em que o Estado teve uma maior intervenção na economia, avança a industrialização e a sua contraface: a urbanização. Verifica-se à época a ampliação do êxodo rural em direção ao Sudeste do Brasil, na busca de empregos nas indústrias, especialmente na cidade de São Paulo. Nesse tempo, aumenta a demanda por serviços de abastecimento de água e demais atividades do saneamento. Assim, os serviços de saneamento passam gradativamente a constituírem um setor próprio, com o surgimento das autarquias, criação da inspetoria de água e esgoto e os investimentos priorizam os bairros de classe média e alta, além das zonas industriais.

Nos anos 1950 e 1960, o Brasil viveu um tempo conhecido como a era desenvolvimentista, com fortes investimentos na indústria de base e através de empréstimos adquiridos junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Em relação ao saneamento no início e final da década de 1960 são criadas as empresas de economia mista, em contrapartida, os governos assumem o compromisso de estimular a cobrança de tarifas pelos serviços, garantindo autonomia para os operadores. Após o golpe civil-militar começa-se a preparar o caminho para privatização do setor de saneamento em conformidade com o desejo dos governos militares.

Em 1964 foi instalada no Brasil a ditadura militar, que perdurou até 1985. As decisões governamentais passaram a ser centralizadas em nível federal, no ano seguinte os Estados Unidos assinaram um acordo com o governo brasileiro criando o “fundo de financiamento para o abastecimento de água”, constituindo assim um período de investimentos na busca da universalização dos serviços de água tratada no país. Também foi criado o Banco Nacional de Habitação (BNH). Para tanto, utilizaram-se os recursos do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) que viria a ser a principal fonte de investimento no setor de saneamento (MENEZES, 2017).

Em 1971 o regime autoritário criou o Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), buscando fortalecer o setor na perspectiva de mercado, impulsionando a cobrança de tarifas, como forma de sustentabilidade financeira dos serviços e tentando viabilizar formas de funcionamento das empresas estaduais com eficiência econômica. Outro elemento a considerar são os investimentos que passam a ser em parte retornáveis. Por fim, os governos no regime militar optaram por priorizar a operação dos serviços de forma mais centralizada nas companhias estaduais. Além de ter o controle do planejamento nos governos estaduais. É importante destacar que este período foi marcado pelo avanço nas atividades de saneamento, pois rompe minimamente a fragmentação existente na época.

O PLANASA prevaleceu até o ano de 1986 quando da extinção do Banco Nacional de Habitação. Então o Brasil vive um longo período de longo de insegurança institucional. Esta conjuntura levou a uma espécie de prestação de serviços fora dos padrões e ao mesmo tempo de uma crescente desigualdades na oferta dos serviços.

O governo de Lula avançou na construção de um marco regulatório de saneamento onde foram criando circunstâncias para um pacto social que beneficia tanto as expectativas dos trabalhadores como do setor empresarial. Destaca-se que os empresários chegaram a fazer prognósticos de que em 10 anos teriam garantido uma participação de no mínimo 20% do setor nos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.

O resultado é que o setor privado não consolidou os prognósticos do avanço dos da participação nos serviços de saneamento básico. De acordo com levantamento do sindicato das empresas privadas, o percentual de atuação das empresas privadas chegou a simplesmente 6% no ano de 2016. Após o golpe contra Dilma Rousseff, o governo de Temer iniciou-se logo o Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) do saneamento básico.

Agora, conforme a Abcon (2023) no governo de Bolsonaro, o setor privado ampliou a participação nos serviços de saneamento de 9,1% dos municípios brasileiros, em 2022, para 15,3% das cidades, em 2023. Ou seja, o setor de saneamento básico é o grande alvo para a privatização. Pois não por acaso foi aprovada a lei 14.026/2020 para estimular a privatização do setor de abastecimento de água e esgotamento sanitário em prejuízo das empresas de economia mista estaduais.

Frente a situação deixada pelo governo Bolsonaro e construída juntamente com o congresso nacional onde o caminho sugerido é a privatização. Assim o desafio para o governo Lula não é simples.

Portanto, encontrar uma saída institucional que possa assegurar a participação do capital privado enquanto parceiros e terceirizados na operação dos serviços sem que sejam privatizados de conjunto o planejamento e a operação são na ordem do dia a mais complexa alternativa a ser elaborada pelo governo de Frente Ampla de Esquerda no Brasil conduzidos pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

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